Você, leitor, e eu, não podemos voltar ao passado. Mas podemos, com o uso de documentos antigos, reconstruir, até certo ponto, como era a vida em outros tempos. Se chegássemos, por exemplo, a uma pequena povoação no Brasil Colonial, em algum momento entre os Séculos XVI e XVIII, veríamos uma realidade muito diferente daquela que encontramos atualmente em centros urbanos.
As ruas dos vilarejos coloniais eram, em sua maioria, tortuosas, nascidas sem qualquer planejamento. Poucas eram calçadas. A poeira, no estio, e a lama, em tempo de chuva, eram inevitáveis. Seria comum, andando por elas, ver porcos, galinhas e, às vezes, alguma cabra que houvesse escapulido de um quintal. As casas eram muito simples, feitas de taipa. Os muros, com frequência, eram construídos com tijolos de adobe, mas cercas de bambu eram também corriqueiras.
Em sua viagem mental, leitor, você chega a cavalo, depois de uma noite chuvosa, entra por uma dessas ruas e não vê quase ninguém. Tem, no entanto, a sensação de que está sendo observado. É que, por trás das gelosias, sempre há olhares à espreita...
Siga em frente. Em toda vila colonial que se preza, o ponto de convergência é uma pequena igreja ou capela, usualmente construída no ponto mais alto da localidade. Ao redor dela, estão umas poucas oficinas - um ferreiro, alguém capaz de fazer e consertar calçados, talvez um alfaiate. Algum comércio de gêneros alimentícios produzidos nas redondezas também pode ser encontrado, mas não se deve esperar muito mais que isso. As hortas estão em quase todos os quintais e ajudam a suprir a mesa das poucas famílias residentes.
Sua primeira preocupação é dar água ao cavalo. Com sorte, esta vila terá um chafariz, e lá você poderá matar a sede e deixar que seu cavalo faça o mesmo. Não há nenhum problema, já que, nos dias coloniais, ninguém dirá ser falta de higiene que humanos e animais bebam água no mesmo lugar. Dois escravos, com grandes vasilhas de barro, recolhem a água que jorra, conversam entre si, olhando com curiosidade para o estranho que acaba de chegar (você!), e depois se vão. Aqui, quem não tem um poço, depende do chafariz para abastecimento, e mandar escravos em busca de água é um hábito.
Um breve descanso e você vai em direção à "venda", o pequeno comércio local. Do lado de fora, grandes argolas de ferro servem para prender cavalos. Você desmonta, amarra seu animal perto de três outros que lá estão, e entra. O interior é meio escuro, mas não impede que você veja, ao fundo, alguns homens entretidos com um jogo de cartas (o jogo é proibido, mas, como se sabe, ninguém teria o trabalho de proibir aquilo que não se faz). Ao centro da mesa, uma cachaça de má qualidade.
Você vai ao rústico balcão e pergunta ao vendeiro se há milho para o cavalo. Sem tirar o cigarro de palha do canto da boca, ele resmunga alguma coisa ininteligível e aponta para um jacá perto da porta. Depois, contraindo o nariz, indaga se você mesmo quer comer. O aspecto do lugar não inspira confiança, mas a fome não lhe deixa escolha. No fogão a lenha está um enorme caldeirão fumegante, que, pelo aspecto externo, não é lavado há muito tempo. Logo lhe é apresentado um cozido cujos componentes você nem tenta identificar. Melhor assim...
Enquanto você come, umas poucas pessoas entram, sem pressa, fazem suas compras e, sem tomar conhecimento do grupo envolvido com o jogo, lá se vão. Um breve aceno de cabeça em sua direção mostra que você não passa despercebido.
É hora de ir. A vila não tem uma estalagem em que se possa passar a noite. Você coloca em um saco de couro as espigas de milho que comprou para o cavalo, paga a conta e sai. Já na rua, vê passar uma criatura coberta por uma pesada capa escura, que só deixa à vista parte do rosto. As mulheres "de bem" que vivem nas vilas e cidades coloniais só saem à rua cobertas desse jeito, ou seja, usando mantilha. Você desamarra o cavalo, monta, contorna a igrejinha e sai da vila pela mesma rua por onde entrou. Já quase chegando à trilha, vê passar um sujeito escarrapachado em uma rede que dois escravos suam para carregar. Deve ser algum proprietário rural das redondezas.
Logo depois, o som das patas e o resfolegar de animais parece mostrar que uma tropa de mulas está por perto. Você não está enganado. Desta vez, haverá companhia para seguir viagem.
Veja também:
Uma descrição feita com saber, em que o leitor se sente mergulhar, de forma quase natural, na incidência do quadro descrito.
ResponderExcluirMuito bem, Marta!
É um texto um pouco diferente daquilo que é "padrão" no blog; fiz uma tentativa de ajudar meus leitores na formação de uma imagem mental da época.
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