sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Colonizadores nem sempre arranhavam o litoral

A antológica afirmação de Frei Vicente do Salvador de que os colonos portugueses que vinham ao Brasil viviam junto ao litoral, arranhando a costa como caranguejos tinha muito de verdade:
"Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que sendo grandes conquistadores de terras não se aproveitam delas, mas contentam-se de andar arranhando ao longo do mar como caranguejos."
Razões para isso? Comecemos com o óbvio: muitos iam estabelecer-se no litoral simplesmente porque... estava mais perto. Havia, também, em boa parte da colônia, um sério obstáculo natural à ocupação: a Serra do Mar, com escarpas muito íngremes em certos pontos. Isto sem falar na população nativa da América que, resistindo à colonização, postava-se no interior, até para fugir à escravização que se lhes queria impor. Há, de Gândavo, um trechinho interessante sobre as razões que bloqueavam as idas ao sertão:
"Não há pela terra dentro povoações de portugueses por causa dos índios que não o consentem, e também pelo socorro e tratos do Reino lhes é necessário estarem junto ao mar por terem comunicação de mercadorias. E por este respeito vivem todos junto da costa." (¹)
Ocorre que não apenas de falta de interesse ou de coragem decorria o fato de não se ocupar o interior. Houve mesmo proibição nesse sentido, segundo, no Século XVIII, explicou Frei Gaspar da Madre de Deus:
"Com duas vistas, ambas muito próprias dos olhos de Martim Afonso, fez este Donatário aquela proibição utilíssima ao bem comum do Reino, e conducente ao aumento de sua Capitania. Ele penetrou os verdadeiros interesses do Estado melhor do que alguns modernos, e o seu fim era não só evitar guerras, mas também fomentar a povoação da Costa. Previu que da livre entrada dos brancos nas aldeias dos índios haviam de seguir-se contendas e alterar-se a paz tão necessária ao aumento da terra; não ignorava que D. João III mandara fundar colônias em país tão remoto de Portugal com o intuito de utilizar ao Estado por meio da exportação dos frutos brasílicos; sabia que todos os gêneros produzidos junto ao mar podiam conduzir-se para a Europa facilmente, e que os do sertão, pelo contrário, nunca chegariam aos portos, onde os embarcassem, ou se chegassem, seria com despesas tais que aos lavradores não faria conta largá-los pelo preço por que se vendessem aos da marinha. Estes foram os motivos de antepor a povoação da costa à do sertão, e porque também previu que nunca ou muito tarde se havia de povoar bem a marinha, repartindo-se os colonos, dificultou a entrada do campo, reservando-a para o tempo futuro, quando estivesse cheia e bem cultivada a terra mais vizinha aos portos." (²)
Menciono, de passagem, que Frei Gaspar da Madre de Deus era nascido em São Vicente, o que talvez explique um pouco suas ideias sobre o povoamento do interior. Mas, voltando à proibição de Martim Afonso de Sousa, vale lembrar que excetuou dela apenas João Ramalho. Ora, que remédio! O homem já andava pelos campos de Piratininga muito antes de que o próprio Martim Afonso cogitasse vir ao Brasil!
Em todo caso, gradualmente as coisas foram mudando.
Depois da fundação de Piratininga (1554), a uma certa distância da vila de João Ramalho (que mais tarde seria "transferida" compulsoriamente para Piratininga), aos poucos a ocupação do interior foi-se fazendo, no rumo das circunstâncias, aliás as mais variadas possíveis, dentre as quais será bom recordar:
a) a existência de um grande rio - o Tietê - que em lugar de correr para o mar, como fazem os rios ajuizados, corria para o interior, e que acabava sendo uma espécie de caminho natural para quem desejava perscrutar a imensidão de florestas que revestia o Continente;
b) a necessidade de ir mato adentro para combater índios que pretendiam, por vezes com muito motivo, atacar a pequena São Paulo;
c) a iniciativa catequética dos jesuítas, pressupondo que fossem os missionários até onde viviam os povos indígenas;
d) os apresadores de índios e buscadores de ouro que não mediam esforços e arriscavam o pescoço na fúria por enriquecimento rápido;
e) no extremo, gente que se via na contingência de fugir à força da Justiça - coisa que em Piratininga não constituía nenhuma raridade - acabava, mesmo sem querer, explorando o interior da capitania.
Tudo isso contribuiu para levar o povoamento lusitano muito além do que seria um limite aceitável para Tordesilhas, até porque onde era esse limite, com exatidão, ninguém sabia mesmo.
Ironicamente, foi no ponto em que as escarpas da Serra do Mar mais íngremes se mostravam que a interiorização do processo colonizatório acabou por ocorrer mais cedo, com maior intensidade e eficácia. Só para contrariar a "regra" de Frei Vicente do Salvador, os colonos da Capitania de São Vicente não se satisfizeram com "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos".

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 31.
(2) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, pp. 71 e 72.


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