Corriam os anos da segunda metade do Século XVI. A pequena Vila de São Paulo, encarapitada e isolada no planalto, vivia situação precária, em se tratando da defesa dos colonizadores - seus habitantes - diante do temor de um ataque vindo de povos indígenas. As constantes provocações contra os ameríndios, que incluíam a captura e escravização de muitos deles, suscitavam tentativas de retaliação. Aí, era hora do medo. Sendo improvável qualquer ajuda das povoações litorâneas, competia aos moradores, se zelavam pela própria pele, tomar medidas que possibilitassem a defesa, na eventualidade de uma rija ofensiva dos injuriados nativos.
A leitura das atas da Câmara de São Paulo lavradas nos anos de 1562 e 1563 traz informações que nos permitem classificar as providências defensivas em três aspectos:
1. Conclusão e conservação do muro que rodeava a Vila
"Aos cinco dias do mês de novembro da era de mil e quinhentos e sessenta e dois anos fizeram os oficiais câmara [...] e na dita câmara requereu o procurador do conselho que se acabassem os muros e baluartes e logo pelos ditos oficiais foram repartidos os moradores para os acabarem [...]." De boa ou má vontade, competia aos moradores, que muito provavelmente mandariam ao trabalho os seus "administrados" (¹), a tarefa de concluir as obras no muro da Vila. O que se deduz, então? A localidade era ainda bastante pobre, de modo que não havia recursos públicos para as obras necessárias. Se tinham amor à vida, mesmo os turbulentos residentes em São Paulo precisavam obedecer.
Do ano seguinte, 1563, existe outra ata em que a conclusão do muro é ordenada. No dia primeiro de fevereiro o procurador requereu aos administradores da Vila "que mandassem suas mercês cobrir a guarita que estava por trás do muro e mais acabar e cobrir as cercas e o que for necessário, e requereu mais o dito procurador [...] que mandassem pôr pena a alguns homens que estão de caminho para o mar, que não vão porquanto estamos esperando por guerra [...]".
Informando, de passagem, que "pôr pena" significava, geralmente, ameaçar com multa e prisão, devemos notar, ainda, que em outra ata, desta vez datada de 13 de fevereiro de 1563, o procurador (era Salvador Pires, na ocasião) requereu "que mandassem suas mercês tirar portas que estavam nos muros desta vila [...]". Não era uma menção aos portões "oficiais" que, por razões óbvias, a povoação deveria ter, e sim às portas que, por conveniência, alguns moradores haviam aberto no muro, em lugar próximo às suas casas. Gente indisciplinada!
2. Pedido de pólvora ao capitão-mor de São Vicente, que governava a Capitania em nome do donatário
"Aos seis dias do mês de março da era de mil e quinhentos e sessenta e três anos foram juntos os oficiais da Câmara à casa de Simão Jorge juiz para fazerem câmara e na dita câmara requeriam suas mercês que mandassem pedir pólvora ao capitão para esta vila [...]." Reconhecendo sua inferioridade numérica, os colonizadores tinham consciência de que a única vantagem que poderiam ter diante dos indígenas vinha do uso de armas de fogo. Portanto, acreditando em um ataque iminente à Vila, era preciso assegurar um suprimento de pólvora.
3. Proibição da saída de colonizadores e índios para o sertão
Conforme ata já citada, colonizadores foram advertidos a "não ir ao mar", quer isso significasse uma descida ao litoral, quer fosse referência a cruzar o Atlântico para ir ao Reino; foi também emitida uma ordem para que ninguém que tivesse índios "administrados" pensasse na ideia de mandá-los ao sertão. Lemos nos registros de 26 de junho de 1563 (²): "[...] por razão que diziam que vinha guerra sobre nós [...] os oficiais acordaram e lhes pareceu bem para o povo, visto a necessidade que temos dos índios e sermos poucos nesta vila [...] que todo homem desta vila e fora dela não leve índio desta vila sem licença da Câmara [...]."
As comunicações, na época, eram difíceis. Não era possível contar com a ajuda de outras povoações, distantes, serra abaixo, pelo malsinado Caminho do Mar. A expectativa de um ataque indígena nascera de informações de índios aliados que, tendo estado no sertão, voltaram relatando os preparativos dos "contrários". Ficamos a imaginar a tensão reinante, muros adentro, entre os habitantes da Vila de São Paulo. Mas em que resultou tudo isso?
A despeito de numerosas escaramuças contra indígenas, ocorridas ao longo dos anos, a teimosa povoação no campo de Piratininga não apenas sobreviveu, mas prosperou. Gerações de mamelucos - assim foram chamados os filhos de pai português e mãe indígena - formaram grande parte das tropas de bandeirantes que atacaram missões, aprisionaram e escravizaram índios, procuraram ouro e, em meio a tantas desordens, fizeram pouco-caso (³) da linha de Tordesilhas, expandindo enormemente o território sob domínio português na América do Sul.
A despeito de numerosas escaramuças contra indígenas, ocorridas ao longo dos anos, a teimosa povoação no campo de Piratininga não apenas sobreviveu, mas prosperou. Gerações de mamelucos - assim foram chamados os filhos de pai português e mãe indígena - formaram grande parte das tropas de bandeirantes que atacaram missões, aprisionaram e escravizaram índios, procuraram ouro e, em meio a tantas desordens, fizeram pouco-caso (³) da linha de Tordesilhas, expandindo enormemente o território sob domínio português na América do Sul.
(1) "Índios administrados" era o nome hipócrita que se dava, na época, aos nativos escravizados.
(2) Decorridos mais de seis meses desde a primeira ata citada, o ataque ainda não acontecera.
(3) Ou nenhum caso...
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