terça-feira, 29 de maio de 2018

As mães-d'água do rio Tietê

Rio Tietê no local de onde partiam as monções no Século XVIII (Porto Feliz - SP)

"Os cabelos verdes, tão verdes, chegavam até os pés e ainda arrastavam; nhanhã não tem visto aqueles fios muito compridos, que às vezes andam boiando em cima d'água? a gente chama limo; são as tranças dela."
José de Alencar, O Tronco do Ipê

Mitos envolvendo criaturas aquáticas capazes de atrair e enfeitiçar humanos são tão antigos quanto numerosos. Embora as sereias da Antiguidade fossem retratadas como seres alados (¹), já na Idade Média surgiram representações de figuras femininas, com cabeça, tronco e braços humanos e uma longa cauda de peixe, feiticeiras das águas, a cujos encantos os que ousavam navegar para longe de casa temiam sucumbir. 
No Brasil, leitores, há, entre as tradições indígenas, algumas que referem a existência de um ser misterioso, que emerge das águas de rios para atrair pescadores incautos - é a uiara, iara ou mãe-d'água (²) - mas há também a lenda do boto, que busca mocinhas namoradeiras... Esses mitos são geralmente associados à região amazônica, com toda a sua exuberância aquática, mas Francisco J. de Lacerda e Almeida (³), ao percorrer o rio Tietê, ouviu de um proeiro (⁴), narrador da lenda como coisa verdadeira, que em pontos de maior profundidade havia, além de fartura de peixes, também as famosas mães-d'água:
"Contou-me [...] que nestes poços havia mães-d'água encantadas, que levantavam grandes ondas e faziam muita bulha, e tinham morto alguns homens, etc. Pedi-lhe a descrição destas encantadas matronas, e ele (não obstante nunca tê-las visto) [sic] me fez a descrição de um monstro mais horrendo que aqueles que nos pinta Horácio. Intentei desabusá-lo; mas ele e toda comitiva se mostraram tão ressentidos e pertinazes, que para o contentar, e evitar alguma sublevação, me vi obrigado a seguir o partido das mães-d'água encantadas." (⁵)
A conversa de Lacerda e Almeida com o proeiro aconteceu em 1788. Talvez ela demonstre que a lenda da mãe-d'água fosse mais generalizada do que às vezes se supõe. Seja como for, é evidente que, àquela altura, já era parte do acervo de crenças populares correntes entre monçoeiros. Nos longos dias de uma viagem pelas águas do Tietê, lendas encontravam abastança de tempo e cenário para propagação.

(1) Como as mencionadas entre as muitas peripécias da Odisseia, quando Ulisses e seus companheiros empreendiam a viagem de retorno a Ítaca, após a conclusão da guerra de Troia.
(2) Alguns estudiosos acham que a lenda apontava, originalmente, para um homem-peixe, e que, somente mais tarde, sob a influência de colonizadores europeus, teria sido identificada como uma mulher de encantos irresistíveis e mortais.
(3) Integrou uma expedição demarcadora de limites entre terras de Portugal e Espanha na América em 1780.
(4) O proeiro era o líder da equipe de remadores em uma embarcação monçoeira (batelão) no Século XVIII. Veja, para mais detalhes, O Trabalho do Proeiro nas Embarcações Monçoeiras do Século XVIII
(5) ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Demarcação dos Domínios da América Portuguesa. São Paulo: Typographia de Costa Silveira, 1841, p. 84.

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