A escravidão era ruim para os escravizados, fato que dispensa qualquer demonstração. Mas, como abolicionistas se esforçavam para comprovar, era má também para os proprietários de escravos. Ao fim e ao cabo, a imensa fonte de lucro que imaginavam ter resultava em prejuízo. Além disso, a preferência por mão de obra cativa era péssima para quem não era nem escravo e nem senhor: o trabalhador livre, que tinha enorme dificuldade para encontrar uma ocupação remunerada, da qual pudesse viver.
O sonho dourado de toda pessoa em tal condição era um emprego público, mas é fácil perceber que, por mais que o Estado lançasse seus tentáculos nessa direção, não havia vagas para todos. Cumpre notar que, nos dias do Império, os cargos públicos eram providos por nomeação, que vinha de uma indicação... Não tenho dúvidas quanto à compreensão de meus leitores quanto às consequências práticas que daí decorriam.
Acompanhemos, agora, um trabalhador livre que não obteve nomeação para cargo público; sendo qualificado, ele teria a possibilidade de exercer aquilo que se chamava de um "ofício manual". A posição, no entanto, era vista como demasiado humilhante para um homem livre, porque significava, na prática, fazer concorrência aos escravos. Sabia-se que empregadores preferiam contratar escravos de aluguel em lugar de ter homens livres a seu serviço. Vejam, leitores, esta observação feita por Frederico L. C. Burlamaqui em 1837:
"É tal a nossa cegueira a este respeito que a alguns miseráveis [sic!] que se oferecem para um tal emprego, reputado o mais indecoroso, só se promete metade do que se costuma dar a um escravo alugado." (¹)
O anúncio ao lado, publicado no jornal Aurora Paulistana em 17 de junho de 1852, demonstra com simplicidade a preferência pela contratação dos serviços de uma cativa (cujo salário, por suposto, seria pago a seu proprietário). Diz o texto: "Na rua da Freira nº 11 precisa-se de uma pessoa para cuidar de uma criança, pagando-se-lhe cinco mil réis por mês, e sendo cativa, melhor, quem pretender dirija-se ao lugar indicado." (²)
Notaram? "sendo cativa, melhor"... Por quê? Ora, leitores, porque uma escrava não poderia, se doente, faltar ao trabalho, não ousaria erguer a voz contra eventuais injustiças, não protestaria contra uma jornada excessiva e, se o fizesse, acabaria silenciada com umas bordoadas. Parece horrível, sim, mas a escravidão, como muitos já assinalaram, tinha a capacidade de cegar mesmo as pessoas mais decentes às injustiças e brutalidades quotidianas.
Diante da dificuldade na obtenção de trabalho e do receio de perder a dignidade executando tarefas geralmente atribuídas aos escravos, não eram poucos - acreditem - os homens livres que preferiam mendigar. Entretanto, a mendicância "sem necessidade" e a vadiagem eram, pelo Código Criminal do Império do Brasil, consideradas crime policial, conforme se vê na Parte IV - Dos Crimes Policiais, Capítulo IV, Artigo 295: "Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertido [sic] pelo juiz de Paz, não tendo renda suficiente." A punição para infratores variava de prisão simples a prisão com trabalhos forçados, mas, a julgar pela quantidade de mendigos que viajantes estrangeiros alegaram ter visto nas ruas do Rio de Janeiro, em especial na primeira metade do Século XIX, parece que a severidade da lei não funcionava a contento. Entretanto, fugindo às generalizações (quase sempre perigosas), devemos considerar que nem todo homem livre que não fosse funcionário público ou militar, que não trabalhasse em um ofício mecânico ou no comércio era, necessariamente, um mendigo. Sempre há exceções.
Um aspecto subentendido do Artigo 295 já citado é que, se um indivíduo tivesse recursos suficientes para viver sem trabalhar, ainda que esses recursos fossem oriundos da exploração da força de trabalho de escravizados, estava livre para ser tão desocupado quanto quisesse. Disso decorria uma espécie de Plano B para quem precisava trabalhar para viver, mas falhava em obter um emprego público: acumular economias suficientes para comprar ao menos dois ou três escravos que, postos a ganho, permitiriam ao dono, se quisesse, passar os dias a dormir suavemente em uma rede. Era assim que pensava C. Schlichthorst, um militar alemão que esteve no Rio pouco depois da Independência: "[...] No Brasil não se pode empregar seu dinheiro melhor do que comprando escravos e alugando-os para trabalhar." (³) Tão arraigado era esse costume, que escravos que obtinham, de algum modo, a liberdade, se chegavam, já livres, a adquirir recursos suficientes, logo tratavam de ter seus próprios cativos para alugar.
Mas esse estado de coisas teria que sofrer mudança, e ela veio, meio forçada, com a extinção definitiva do tráfico de africanos. A partir de então, passou a ser considerado de bom-tom ter criadagem livre em lugar de escravos domésticos. Antes mesmo da Abolição, a entrada de colonos europeus (⁴) iria contribuir, também, para uma gradual mudança de mentalidade.
(1) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 60.
(2) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 52.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 150.
(4) Senhores de escravos não estavam dispostos, todavia, a uma mudança ampla em suas ideias; até tentaram ser "senhores de colonos", aplicando, com os imigrantes, as mesmas práticas que adotavam com escravos. Revoltas de colonos são testemunho desse fato.
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Marta
ResponderExcluireu sempre aprendo e me encanto
com seus textos tão completos.
Posso vir pouco comentar,
entretanto ler eu leio sempre.
Bjins
CatiahoAlc.
Olá, minha amiga, é bom vê-la por aqui!
ExcluirGosto muito dos leitores tagarelas, mas também gosto dos leitores quietinhos rsrsrsssss... É que também leio e nem sempre comento. Às vezes leio e - uau - o texto é incrível (como são os seus), e faltam as palavras, mas fico ruminando as ideias. Portanto, compreendo plenamente o que quer dizer.
Leia sempre, comente quando quiser e puder. Será sempre bem-vinda.
Tenha uma ótima semana!
Vida difícil, a dos trabalhadores livres, no meio de uma encruzilhada política entre o ter escravos), ou não ter. É caso para para invocar um velho rifão: preso por ter cão, preso por não o ter. :)
ResponderExcluirAbraço, Marta :)
O pior é que muitas vezes eram classificados como "preguiçosos" ou "incapazes"...
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