sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Escravos como mercadoria

Quando se diz que escravos eram mercadoria, há quem pense haver, nessa afirmação, um certo exagero. Vou mostrar que não, com um trecho de uma obra que circulou em Portugal no Século XVIII.
Trata-se de um livrinho constituído, basicamente, de perguntas e respostas, com o propósito de ensinar geografia; o título, no entanto, é algo pomposo, Descripção da Terra ou Methodo Breve da Geographia. O padre francês Langlet Dufresnoy foi seu autor, mas a edição portuguesa trazia, escrita pelo  tradutor João Bautista Bonavie, uma introdução a cada um dos Continentes.
Pois bem, discorrendo o tradutor sobre a África, pôs-se a listar artigos que nela eram comercializados:
"O principal comércio que nela fazem consiste em marfim, em pó de ouro, em açúcar, em sal, em peles de animais bravos, em cavalos e em negros, que compram ali para os transportar à América para trabalhar nos engenhos de açúcar e tabaco e nas minas de ouro." (¹)
A crueza da enumeração chega a nos parecer chocante, ofensiva, até. Mas era isso mesmo. Um escravo consistia, aos olhos dos que faziam o tráfico, apenas em mercadoria. Não convinha a um comerciante de escravos a reflexão sobre o fato de que estava comprando e/ou vendendo seres humanos. Se o fizesse, talvez fosse compelido a abandonar seu execrável mas lucrativo negócio. Era questão de mercado - havia quem comprasse escravos, havendo, por conseguinte, quem se dispusesse a vendê-los, como se fazia com peles e marfim, ou açúcar, sal e cavalos.
Por outro lado, não pode escapar o fato de que, longe do trato diário com o comércio de gente, um autor/tradutor europeu se prestasse, com tanta naturalidade, a enumerar "negros", entre outras mercadorias. A escravidão se mantinha, também, porque acabava parecendo a coisa mais natural deste mundo. A percepção moral de sua iniquidade havia, em grande parte, desaparecido, o que se confirma por este outro trecho, desta vez do autor do original francês, em que, descrevendo o que chamava "reino de Congo", salientava, quase como virtude, o "grande comércio de negros" que lá se fazia:
"O grande reino de Congo, que se acha na costa do Mar Oceano, é dividido em vários pequenos Estados ou Reinos, nos quais os portugueses e holandeses têm algumas povoações, e se faz naqueles países assaz grande comércio de negros." (²)

Mapa do Continente Africano, incluído na obra a que se refere esta postagem

(1) DUFRESNOY, Nicolas Langlet. Descripção da Terra ou Methodo Breve da Geographia. Lisboa: Of. de Joseph da Costa Coimbra. 1757, p. 208.
(2) Ibid., p. 216.


Veja também:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.