terça-feira, 26 de junho de 2018

O que havia de elogiável em São Paulo no Século XVI

"Esta terra parece um novo Portugal" (¹), escreveu o jesuíta Fernão Cardim. A que terra se referia? A São Paulo de Piratininga e seus arredores, na Capitania de São Vicente. Era o Século XVI.
Cardim acompanhava o visitador Cristóvão de Gouvêa em viagem (²) de supervisão pelos colégios e missões que a Companhia de Jesus havia estabelecido no Brasil. Causara espanto o luxo que ostentavam os moradores da Bahia e Pernambuco, que, através do vestuário dispendioso, comprovavam a prosperidade dos empreendimentos açucareiros coloniais. Porém, chegando a São Paulo, Cardim se põe a gabar, não os veludos, plumas e sedas, mas a fertilidade da terra, que devolvia em farta produção todo o trabalho realizado por colonizadores e indígenas. Foi tão pródigo em elogios, que vale a pena dividir seu relatório em itens:

A Vila tinha boa localização
"A vila está situada em bom sítio, ao longo de um rio caudal [...]." (³)
Os moradores da Vila tinham muito respeito pelos padres
"Não têm cura nem outros sacerdotes senão os da Companhia, aos quais têm grande amor e respeito [...]." (⁴) Quanto a isto, ou Cardim era de uma inocência admirável, ou os moradores de São Paulo tinham, nesse tempo, incrível talento cênico - talvez acontecesse um pouco das duas coisas. Quem é que não sabe que os colonizadores viviam às turras com os "padres da Companhia", sempre que estes tentavam obstar a escravização de indígenas? Os primeiros missionários enfrentaram João Ramalho e sua numerosíssima prole; no Século XVII, o "amor e respeito" foi tanto, que chegaram a expulsar os jesuítas da Vila, somente readmitidos quando prometeram solenemente que não haveria intromissão nos assuntos "seculares".
Os moradores da Vila eram generosos no sustento dos padres
"Os moradores sustentam seis ou sete dos nossos, com suas esmolas com grande abundância [...]." (⁵)
Havia boas pastagens onde se criava gado bovino
"É terra de grandes campos e muito semelhante ao sítio d'Évora, na boa graça, e campinas, que trazem cheias de vacas, que é formosura ver." (⁶)
Vinhas eram amplamente cultivadas
"Têm muitas vinhas e fazem vinho [...]: nunca vi em Portugal tantas uvas juntas, como vi nestas vinhas [...]." (⁷)
A produção de figos e marmelos era notável
"[A terra] tem grandes figueiras de toda sorte de figos [...], muitos marmeleiros que dão quatro camadas, uma após outra, e há homem que colhe doze mil marmelos, de que fazem muitas marmeladas [...]." (⁸) Sob esse aspecto não há discussões, a produção de marmelada de São Paulo em fins do Século XVI era suficiente não só para a demanda local, como também para comércio em outras capitanias.
Havia cultivo de rosas-de-alexandria
"[A terra] tem muitas rosas-de-alexandria, e porque não tem das outras rosas, das de-alexandria fazem açúcar rosado para mezinha (⁹), e das mesmas cozidas [...] fazem açúcar rosado para comer, e fica sofrível. [...]." (¹º)
Os pinhões eram de boa qualidade
"Há muitos pinheiros, as pinhas são maiores, nem tão bicudas como as de Portugal, e os pinhões são também maiores, mas muito mais leves e sadios [...]." (¹¹)
Era boa a produção de trigo e cevada
"Dá-se trigo e cevada nos campos: um homem semeou uma quarta de cevada e colheu sessenta alqueires; é terra fertilíssima, muito abastada [...]." (¹²)
Vejam, leitores, que Cardim fazia elogios, elogios e mais elogios. Uma coisa, porém, não foi capaz de gabar: o vestuário dos paulistas. Logo no início da descrição da Vila, comentara, reparando que todo o trajar era rústico e antiquado: "Vestem-se de burel e pelotes pardos e azuis, de pertinas compridas, como antigamente se vestiam." (¹³). Pode-se com justiça supor que o jesuíta, estranhando a moda, tenha perguntado aos moradores a que se devia tanto amor ao passado. Da explicação recebida, obteve a conclusão que aparece depois de toda a loquacidade quanto às virtudes do lugar: "Tem [esta terra] grande falta de vestido, porque não vão os navios a S. Vicente, senão tarde e poucos". (¹⁴)
Em São Paulo quase não circulava dinheiro amoedado. Mas, ainda que houvesse dinheiro, não havia roupas finas à venda, por ser reduzido o comércio de artigos vindos do Reino. Tecidos, portanto, só os da terra, de algodão; talvez alguma lã. E foi isso que Cardim viu.

(1) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 106.
(2) A viagem durou de 1583 a 1590. A Narrativa Epistolar foi dirigida ao provincial jesuíta em Portugal.
(3) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Op. cit., p. 104.
(4) Ibid., p. 104.
(5) Ibid.
(6) Ibid.
(7) Ibid., pp. 104 e 105.
(8) Ibid., p. 105.
(9) Ou seja, para uso supostamente medicinal.
(10) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Op. cit., p. 105.
(11) Ibid., p. 105.
(12) Ibid.
(13) Ibid., p. 104.
(14) Ibid., p. 105.


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