quinta-feira, 7 de junho de 2018

Sobre a opinião da plebe

"Non sequeris turbam ad faciendum malum [...]."
Exodus XXIII, 2

Ir contra a multidão exige uma força moral que não é exatamente virtude generalizada na humanidade. Falemos sério, leitores: são poucas as pessoas que ousam manifestar e defender opinião contrária àquela que a maioria parece apoiar. Por outro lado, a força das multidões é incontestável - mas estariam elas sempre certas?
Fiz uma pequena seleção de momentos em que a atitude das massas teve importância para o rumo dos acontecimentos, todos relacionados à Antiga Roma. Então, leitores, vejam o que vem a seguir, mas com a convicção de que se trata apenas de uma amostra. A lista poderia ser muitíssimo mais longa - em se tratando de dar a volta ao mundo, faria concorrência a Fernão de Magalhães.

Espetáculos de gladiadores para agradar a plebe


Os primeiros torneios de gladiadores foram realizados em Roma para dar oportunidade de treinamento aos cidadãos livres, em ocasiões em que estavam dispensados de deveres militares. No entanto, os espetáculos sangrentos caíram no gosto dos romanos, de modo que figuras de destaque na vida política passaram a ver na realização de lutas entre gladiadores profissionais (¹) a ocasião perfeita para assegurar o favor popular. Daí resultaram consequências desastrosas, conforme argumentou Aneu Floro (²):
"Por que motivo os gladiadores se revoltaram contra seus treinadores, a não ser pelo fato de que se obtinha o favor da plebe com a realização de espetáculos, nos quais supliciar o oponente vencido chegou a ser uma arte?" (³)

Envolvimento popular na Conjuração de Catilina


De acordo com Salústio (⁴), "a plebe, desejando algo novo, apoiava o plano de Catilina" (⁵). Surpreendente? Nem um pouco. Qualquer um que levantasse a voz contra a autoridade senatorial tinha enorme chance de obter apoio da plebe, e foi, em princípio, exatamente o que ocorreu neste caso. Quando, porém, a maré se tornou desfavorável a Catilina e seus adeptos, as massas mudaram de partido, um fenômeno que também não é nenhuma raridade. Na interpretação de Salústio, "a plebe que, inicialmente, desejando coisas novas, favorecera a guerra civil, uma vez descoberta a conjuração, mudou de ideia, passou a execrar Catilina e a elevar Cícero aos céus, e, como se liberta de uma escravidão, se agitava em alegria e comemorações". (⁶)
Parece que a plebe teria compreendido que não lhe era nada favorável o plano de Catilina de incendiar a cidade de Roma. Afinal, as poucas coisas que o povo comum tinha como suas seriam consumidas pelas chamas.

Participação da plebe na perseguição de cristãos


Na visão de Tertuliano (⁷), a partir da primeira perseguição aos cristãos em Roma, nos dias de Nero, tornou-se usual colocar a culpa nos adeptos do cristianismo, sempre que o Império era afetado por algum problema grave. A perseguição recrudescia e, por consequência, nos circos havia novos banhos de sangue para abrandar o descontentamento público:
"A plebe amotinada pedia a perseguição dos cristãos, dizendo-os inimigos públicos do imperador e do Império, da religião, da pátria, da natureza e do mundo." (⁸)
E mais: 
"Se o Tibre alcança os muros da cidade, ou se o Nilo não transborda o suficiente para as plantações, se o céu, sem nuvens, não traz chuva, se há tremor de terra ou se ocorre escassez de trigo, ou se grassa a peste, o povo não tarda a gritar para que 'joguem os cristãos ao leão'. Para tantos cristãos um só leão?" (⁹)

Perdoem-me a aparente redundância, leitores, mas não sei se é preciso concluir com uma conclusão. Os fatos não falam por si mesmos? É fácil perceber que um abismo separa a democracia saudável das agitações incoerentes, nascidas talvez de causas legítimas, porém manipuladas para fins que não se ousa explicitar. Sêneca (¹º), cidadão romano, filósofo estoico, professor de Nero, opinou que "homens e mulheres, idosos e crianças, governantes e povo acorrem unânimes, e umas poucas palavras agitam de tal modo a multidão, que esta vai mais longe do que pretendia o agitador" (¹¹). Estava ele certo ou errado?

(1) Geralmente estrangeiros escravizados após derrota em luta contra os exércitos de Roma.
(2) Um autor contemporâneo do imperador Adriano.
(3) Epitome rerum Romanarum, Livro III.
(4) 86 - 34 a.C.
(5) Catilinae coniuratio.
(6) Ibid.
(7) c. 160 - 220 d.C.
(8) Apologia.
(9) Ibid.
(10) 4 a.C. - 65 d.C.
(11) De Ira. As citações de obras de Floro, Salústio, Tertuliano e Sêneca que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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