quinta-feira, 21 de março de 2019

O que calçavam os moradores de São Paulo em 1583

Graças a uma querela entre moradores da vila de São Paulo e sapateiros que aí trabalhavam, podemos saber alguma coisa sobre os calçados em uso por colonizadores e seus descendentes no Século XVI. Mas vamos devagar, para bom entendimento do que é que acontecia.
Em reunião da Câmara ocorrida no dia 1º de julho de 1583, o procurador da vila requereu aos oficiais "que suas mercês fizessem um juiz do ofício de sapateiro, porquanto os sapateiros não tinham regimento de seu ofício, nem muitos deles não eram examinados e levavam mais pelo calçado do que era razão levar", conforme registrou o escrivão na ata (¹) correspondente. Ora, na época, para controle do exercício das várias profissões, prevalecia, em algum grau, o sistema de corporações (²), e é nesse sentido que deve ser entendida a queixa do procurador, mostrando que os sapateiros, não tendo juiz e regimento do ofício, cobravam por seu trabalho quanto lhes desse na telha, para grande prejuízo dos moradores da vila. 
A Câmara, assim solicitada a agir, não se fez de rogada, e nomeou juiz para o ofício, além de estipular preços máximos para os vários tipos de calçados que podiam ser encontrados na vila - é justamente o que mais nos interessa, porque assim é que podemos saber com o que é que os paulistas do Século XVI protegiam e/ou adornavam os pés. Simplificando, e com menção dos principais itens, a coisa ficava assim:

Botas
"botas novas de [couro de] veado, sendo engraxadas": 430 réis;
"não sendo engraxadas": 1 cruzado;
"sendo de porco": 1 cruzado;
"de vaca, sendo [...] engraxadas": 1 cruzado.

Sapatos masculinos
"sapatos singelos de uma sola, de qualquer couro que seja, como não seja de cordovão": 1 tostão;
"sapatos [...] de duas solas": 150 réis.

Sapatos femininos
"sapatas de mulher, quer de porco, quer de veado [...], as quais serão de um palmo de talão para cima": 150 réis.

Chinelos
"chinelas de homem, sendo de sola [...], quer de vaca, quer de porco, quer de veado": 150 réis;
"chinelas de cortiça, dando o sapateiro a cortiça": 3 tostões;
"não dando a cortiça": 250 réis;
"chinelas de mulheres, de três pontos e seis pontos": 100 réis.

Sapatos abertos
"sapatos abertos até meia perna, de duas solas": 300 réis.

Talvez os leitores se interroguem quanto ao que aconteceria se algum sapateiro, num arroubo de criatividade, fizesse algum sapato que não estivesse descrito na postura da Câmara. Vejam, então, que os vereadores de São Paulo, habituados à rotina da vila, foram precavidos. Dizia ainda a ata: "[...] toda a mais obra que fizerem e que não está posta nesta postura, a trarão a mostrar à Câmara ou ao juiz, para que com o juiz de ofício lhe ponha o preço que hão de levar."
Com a exceção de algum raríssimo calçado vindo do Reino, eram esses os sapatos disponíveis para a gente de São Paulo no Século XVI. Quanto aos preços estipulados, não passavam de formalidade e eram indicados apenas para efeito de equivalência: dinheiro amoedado quase não circulava na vilazinha de São Paulo, razão pela qual os pagamentos eram, habitualmente, feitos em espécie

(1) Para não enlouquecer os leitores, os trechos da ata aqui citados foram transcritos em ortografia atual, sendo acrescentadas as vírgulas indispensáveis.
(2) As corporações de ofício foram completamente extintas no Brasil pela Constituição de 1824.


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