quinta-feira, 28 de março de 2019

Como era feita a conservação das embarcações que iam ao sertão

Quase todas as embarcações usadas em expedições fluviais no Brasil Colonial eram feitas de um único tronco, uma vez que árvores gigantescas ainda eram regra nas florestas. Os ameríndios eram peritos em fazer canoas mediante uma técnica que, a despeito de um tanto morosa, era compatível com as ferramentas rudimentares de que dispunham: a área da madeira que devia ser escavada era primeiro queimada e, depois, removida mediante escarificação. 
Os colonizadores portugueses trouxeram consigo conhecimentos de construção naval que não tardaram em adaptar à navegação fluvial, de modo que as longas canoas de um só tronco também foram usadas por eles (¹). Como, porém, executar a conservação de tais embarcações durante as viagens, sertão adentro? De onde viria o material necessário? Uma carta escrita pelo padre Antônio Vieira no Século XVII, relatando uma expedição pelo rio Tocantins, oferece informações preciosas em resposta a estas questões:
"Os armazéns de que se tiram todos estes aprestos são os que a natureza tem prontos em qualquer parte deste rio [...], que é coisa verdadeiramente digna de dar graças à providência do Divino Criador, porque indo nesta jornada [...] em qualquer parte que chegamos achamos prevenido de tudo a pouco trabalho. A estopa se faz de cascas de árvores, sem mais indústria que despi-las. Destas mesmas ou outras semelhantes fazem os índios cordas muito fortes [...]. Os toldos se fazem de vimes, que cá chamam timbós-titica, e certas folhas largas a que chamam ubi, tão tecidos e tapados que não há nenhuns que melhor reparem do sol nem defendam da chuva, por mais grossa e continuada, e são tão leves que pouco peso fazem à embarcação." (²)
Dizia ainda Vieira:
"O breu sai da resina das árvores [...], e se breiam com ele não só as canoas, senão os navios de alto bordo [...]. As velas, se as não há ou rompem as de algodão, não se tecem mas lavram-se com grande facilidade, porque são feitas de um pau leve e delgado, que com o benefício de um cordel se serra de alto a baixo [...], e com o mesmo de que fazem as cordas, que chamam embira, amarram e vão tecendo as tiras como quem tece uma esteira [...]." (³)
Maravilhava-se o jesuíta de que, com o emprego de materiais extraídos da floresta, fosse dispensável, nas embarcações, o uso de pregos:
"Tudo isto se arma e sustenta sem um só prego [...], pois todo o pregar se supre com o atar, e o que havia de fazer o ferro fazem os vimes, a que também chamam cipós, muito fortes, com que as mesmas partes da canoa se atracam, e tudo quanto dela depende vai tão seguro e firme como se fora pregado." (⁴)
Vieira tinha razão: havia um verdadeiro armazém natural à disposição de indígenas e colonizadores que, amalgamando saberes em suas expedições sertão adentro, iam dando forma, voluntariamente ou não, à configuração territorial que o Brasil tem hoje. 

Indígenas construindo uma embarcação (⁵)

(1) Ainda que outros tipos de embarcações também estivessem em uso.
(2) Cf. MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 463.
(3) Ibid., pp. 463 e 464.
(4) Ibid.
(5) ____  Bilder-Atlas Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



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