quinta-feira, 14 de março de 2019

Abusos de colonizadores contra indígenas escravizados

Acusação feita por missionários jesuítas contra colonizadores do Maranhão e do Pará: indígenas não apenas eram escravizados (contrariando ordens vindas do Reino), como eram deixados sem doutrinação. E, grande absurdo, ao menos sob o ponto de vista dos padres: mesmo sem a catequese, os ameríndios escravizados eram batizados, "imaginando seus senhores mais por ignorância, que por malícia, que bastava aplicar-lhes com a água a forma para ficarem regenerados à graça, não lhes causando mais efeito aquele banho salutífero, que se fossem uma pedra ou tronco de uma árvore" (¹), conforme expressão do jesuíta José de Moraes, que viveu no Século XVIII.
Vejam, leitores, que, se adotarmos a ótica dos missionários, seremos levados à inevitável conclusão de que, afinal, não eram só os indígenas escravizados e batizados na mais completa ignorância do significado de tal cerimônia que tinham necessidade de doutrinação - os senhores, vindos do Reino ou nascidos no Brasil, também precisavam com urgência de catequese. Vejo aqui duas possibilidades: ou admitimos a ignorância dos colonizadores, que viam alguma espécie de poder mágico na água do batismo, ou entendemos que os escravizados eram forçados ao batismo para acalmar a consciência dos senhores, quase sempre gente religiosa "de fachada", e não mais que isso, porque, prevendo alguma importunação dos missionários, tratavam de fazer com que os escravos fossem, ao menos formalmente, admitidos na Igreja. Sabendo que havia clérigos também adeptos da escravização de ameríndios, não chega a ser surpresa que alguns ministrassem o batismo nessas circunstâncias.
Ninguém deve imaginar, porém, que o fato de um escravo indígena ser batizado oferecia a ele alguma vantagem. A crermos no que escreveu José de Moraes, vinha depois uma sequência de abusos:
  • Senhores impediam que escravos se casassem segundo as regras da Igreja, sob a curiosa alegação de que os casados se mostravam preguiçosos no trabalho;
  • Não havia nenhuma preocupação em prover assistência religiosa para os escravos que, doentes ou idosos, se aproximavam da morte (²);
  • Quando indígenas escravizados morriam, de acordo com o testemunho do padre José de Moraes na História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará, "ficavam seus corpos insepultos, ou sem sepultura eclesiástica, porque a uns os lançavam no rio e a outros os enterravam ao pé das casas, por se pouparem de maior trabalho em os fazer conduzir para os lugares sagrados, sem reverência ao batismo que receberam, sem temor algum de Deus e sem medo dos homens, que o sabiam e não impediam por razão de seu ofício". (³)
Alguém poderia dizer que José de Moraes talvez estivesse exagerando. A isso respondo que relatos semelhantes são tão comuns em relação aos escravos, fossem eles ameríndios ou de origem africana, que me parece tolice duvidar. Embora já existisse um reconhecimento oficial da Igreja (⁴), muitos colonizadores ainda se recusavam a admitir o óbvio: povos indígenas eram parte da humanidade. 

(1) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 427.
(2) Embora o governo português cobrasse dízimos de toda a população colonial, ficando, portanto, obrigado a garantir a assistência religiosa necessária, isso, na prática, dificilmente acontecia, de modo que os moradores do Brasil, fossem livres ou escravos, nem sempre podiam contar com a presença de clérigos que celebrassem missa com regularidade e se encarregassem dos sacramentos, a menos que residissem nas povoações maiores. Alguns senhores de engenho assalariavam capelães para que vivessem em suas terras.
(3) MORAES, José de S.J. Op. cit. p. 427.
(4) Bula Sublimis Deus, Papa Paulo III, 1537.


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