terça-feira, 25 de julho de 2017

A cobrança dos dízimos pela administração portuguesa no Brasil Colonial

Dízimos, leitores, eram cobrados da população colonial como se faria em relação a um imposto qualquer. Funcionava assim:
  • Era o Estado português que cobrava os dízimos, ficando encarregado, por isso, de prover tudo o que se relacionava ao sustento da Igreja e do clero;
  • Como regra geral, em lugar de fazê-lo diretamente, o governo lusitano arrendava a cobrança a alguém que pagava um valor antecipado (um "contratador dos dízimos"), e que, por isso, ficava com o direito à arrecadação junto aos "contribuintes", com todas as consequências daí decorrentes, que os leitores não terão dificuldade em imaginar;
  • Também como regra geral, o dízimo era arrecadado em espécie (até porque, nos dois primeiros séculos da colonização, quase não havia dinheiro amoedado no Brasil).
A questão intrigante que se levanta é esta: por que o Estado, e não a Igreja, fazia a cobrança dos dízimos? De acordo com João Manuel Pereira da Silva, "cabendo aos reis de Portugal, pela bula pontifícia de 1551, na qualidade de grão-mestres das três ordens militares de Cristo, Avis e Santiago, os privilégios de inteira jurisdição espiritual e eclesiástica sobre as suas conquistas, chamou a si a Coroa portuguesa o direito à cobrança do imposto do dízimo nas colônias, o qual no Reino e em vários Estados católicos da Europa, pertencia ao clero, formando a base da sua subsistência e da manutenção do culto divino [...]." (¹)
O pagamento dos dízimos era compulsório e pressupunha que os colonizadores teriam direito a receber assistência religiosa. Esta, porém, não estava disponível em grande parte do Brasil - não foram poucos os autores que referiram o fato de haver localidades em que jamais pisava um padre, não ocorrendo, pois, sequer celebração de missa, é preciso frisar, em tempos nos quais se entendia que morrer sem os sacramentos era uma terrível maldição.
Tudo isso considerado, veremos, agora, alguns casos interessantes, relativos à cobrança dos dízimos no Brasil. Referindo-se à produção de açúcar nos engenhos coloniais, Antonil observou:
"Tira-se também o dízimo, que se deve a Deus, que vem a ser de dez, um; e ele fica no engenho e põe-se nas caixas, que antecipadamente manda o contratador dos dízimos ao caixeiro vazias, e dele as torna a cobrar cheias." (²)
Análoga era a situação quanto ao tabaco que se produzia e exportava:
"Beneficiado e enrolado o tabaco, e pago o seu dízimo a Deus [...], como consta do arrendamento do dízimo [...], vem pagando seis carretos e fretes para a Cidade da Bahia, até se meter em uma sua própria alfândega, aonde se despacham para Lisboa, um ano por outro, de vinte e cinco mil rolos para cima [...]." (³)
Nem mesmo a população indígena ficava isenta do pagamento dos dízimos. Neste caso, porém, foi proposto um sistema de cobrança per capita, e não percentual, conforme se vê em documento citado por Varnhagen na segunda edição da História Geral do Brasil"Como, entre os índios, não se podem bem averiguar estes dízimos [...], visto não saberem contar até dez, ordenaram os predecessores de Vossa Majestade que pagassem tais dízimos por encabeçamento [...]." (⁴) Esse documento, de autoria de Bento Maciel Parente, é datado da primeira metade do Século XVII.
Finalmente, leitores, iremos considerar um caso absolutamente escabroso de pagamento de dízimos, ocorrido quando paulistas, havendo atacado missões jesuíticas, repassaram a dois clérigos que os acompanhavam como capelães (!!!) uma parte dos indígenas aprisionados para escravização. Foi o que relatou o missionário Antonio Ruiz de Montoya:
"O número de pessoas que levaram não se sabe (⁵), algo se rastreará pelo dízimo que pagaram à Igreja: deram ao religioso, como sua quota, quinhentas pessoas, de modo semelhante ao pecuarista que paga o dízimo de ovelhas ou vacas; ao clérigo entregaram duzentos [índios]." (⁶)
Como já foi dito, o dízimo, no Brasil Colonial, devia ser pago à administração portuguesa, e não diretamente à Igreja; neste caso, porém, tão ilegal quanto a expedição de apresamento, foi a entrega de escravizados aos dois capelães, a não ser por um detalhe: as missões atacadas e destruídas ficavam em território colonial espanhol, e não lusitano.

(1) SILVA, João Manuel Pereira da. História da Fundação do Império Brasileiro Tomo I. Rio de Janeiro: Garnier, 1864, p. 160.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 90.
(3) Ibid., p. 120.
(4) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 493.
(5) Quando atacavam as missões ou reduções, era comum que bandeirantes matassem a todos que opunham resistência; além disso, muitos indígenas aprisionados morriam no caminho até São Paulo ou nos primeiros tempos de escravidão. É por isso que Montoya não sabia dizer com exatidão quantos índios haviam sido levados.
(6) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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4 comentários:

  1. Tantas semelhanças com o sistema fiscal de hoje. A cobrança é feita, a mal ou bem, mas o serviços de que devíamos beneficiar por sermos contribuintes está longe de ser universal e geograficamente homogéneo.

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  2. Mto bom o texto, bem objetivo. Parabéns pelo trabalho!

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    1. Obrigada, Martha Pereira da Silva. Apareça sempre por aqui...

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