quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Cristãos em Roma

É fim de tarde e, apesar do movimento ainda grande na rua, Gaius começa a guardar seus apetrechos de sapateiro para fechar a oficina. Ele é conhecido em toda a cidade por fazer excelentes calçados para damas. Tem consciência e um justo orgulho de suas habilidades. Para um artesão livre como ele, isto significa respeito e uma situação econômica que, se não o faz rico, ao menos permite uma vida sem grandes dificuldades. À medida que as horas de luz se desvanecem, também nas oficinas vizinhas os trabalhadores, quer livres, quer escravos, vão encerrando a jornada. Tochas são acesas, o movimento de pedestres diminui, enquanto cresce o de carroças e carregadores que fazem chegar à cidade as mercadorias que vêm de longe.
Gaius olha, afoitamente, para um e outro lado, com a estranha sensação de estar sendo observado. Parece que alguém o segue. Um legionário, o que quererá? A cidade e o Império passam por tempos difíceis, as denúncias falsas e as extorsões não são raras. Bobagem, só uma impressão...
Não é. Gaius apressa o passo, tentando não mostrar qualquer alteração na fisionomia. Inútil. A respiração vai se tornando ofegante, as mãos suam frio. Logo ali está uma taberna. Entra, pede um pouco do cozido que fumega, paga por ele, tenta comer. O legionário entra e, olhando discretamente na direção de Gaius, também pede o cozido e pão. Aproxima-se do sapateiro, mergulha um dos dedos no caldo e, sobre a madeira, com dois movimentos, faz um tosco desenho. Gaius observa, esboça um tênue sorriso, assente com a cabeça, respira aliviado. O jantar modesto torna-se saboroso, sapateiro e soldado comem sem proferir qualquer palavra. O legionário parte o pão em bocados que fazem a alegria de alguns cães que estão por ali e que, agradecidos, abanam a cauda. 
Os dois homens saem e, logo adiante, enveredam por uma rua menos movimentada. O soldado voltara à cidade há pouco, depois de um tempo de serviço na Ásia Menor. Fora lá que um dia, na rua, ouvira um orador itinerante. Ideias novas, sim, mas persuasivas. Antes do retorno, alguém lhe dissera para, na capital do Império, procurar Gaius, o sapateiro. Estivera a observá-lo, esperando o momento de, sem ofensa à discrição, falar com ele. 
Caminhando sempre, chegam a uma área da cidade em que se veem casas habitadas por famílias de algumas posses.
- É aqui...
À porta, um escravo reconhece Gaius, mas franze a testa ao ver o legionário que, de imediato, traça no ar o mesmo sinal que, há pouco, usara para ser reconhecido pelo sapateiro. Assim identificado, é admitido. Passam por um corredor e logo estão em um pátio, de onde se vê, sob o brilho do luar, um jardinzinho bem-cuidado. Ao fundo, luzes oscilantes de candeia denunciam o lugar de reunião, e é para lá que se dirigem, já ouvindo a voz de alguém que lê.
Entram. É Urbanus, dono da casa, o leitor. Rodeiam-no a família, alguns escravos, alguns amigos. Os recém-chegados se acomodam, a leitura recomeça. De vez em quando, breve pausa para alguma explicação. São irmãos de fé.
Um quarto de hora mais tarde, finda a leitura, com olhos semicerrados, sussurram um cântico:
"...sed semet ipsum exinanivit formam servi accipiens in similitudidem hominum factus et habitu inventus et homo
humiliavit semet ipsum factus oboediens usque ad mortem mortem autem crucis
propter quod et Deus illum exaltavit et donavit illi nomem super omne nomem
ut in nomine Iesu omne genu flectat caelestium et terrestrium et infernorum
et omnis lingua confiteatur quia Dominus Iesus Christus in gloria est Dei Patris" (*)
Seria imprudência cantar mais alto, as palavras poderiam cair nos ouvidos errados. Suas vozes se perdem na noite romana. 

(*) Ad Philippenses II, 7 - 11
Este poema do Primeiro Século foi composto originalmente em grego e provavelmente era cantado. Sendo esta postagem ambientada em Roma, decidi inclui-lo aqui em latim. Os leitores que assim o quiserem poderão vê-lo em português, na tradução mais a seu gosto, no capítulo II da Epístola de São Paulo aos Filipenses.


Veja também:

4 comentários:

  1. Um post encantador, bem a propósito.
    Um Feliz Natal, Marta!

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  2. Bom dia Marta. Texto incrível. Um Feliz Natal para você e familiares.

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    Respostas
    1. Obrigada, Luiz Gomes. Tenho visitado seu blog com frequência. Espero que logo seja possível fazer viagens mais seguras e, assim, poderei conhecer alguns lugares que ainda não visitei e que, por suas fotos, vejo que são muito interessantes.

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