Teseu foi um herói lendário, supostamente introdutor do conceito de democracia em Atenas, e teria vivido nos primórdios da cidade. Nada impede que haja existido alguém real com esse nome, a quem o tempo e as sucessivas narrações dos feitos se encarregaram de quase deificar. Em sua homenagem eram realizadas cerimônias em Atenas, que Plutarco, justificando em Vitae parallelae, relacionou a uma suposta aparição durante a batalha de Maratona em 490 a.C., durante a Primeira Guerra Médica: "Naquela terrível batalha que travaram em Maratona contra os medos (¹), afirma-se que muitos dos combatentes que nela estiveram viram nitidamente a figura de Teseu que marchava diante deles portando armas e, de espada em punho, fazia muitas vítimas entre os inimigos" (²).
Lendas bélicas não são exclusividade de povo algum. Os romanos também tinham como certa a aparição de Castor e Pólux, os gêmeos celestes, em momentos decisivos de suas guerras. Uma dessas ocasiões teria sido em um combate contra os latinos, no contexto do fim da realeza, com a deposição do rei Tarquínio, o Soberbo, e o estabelecimento da República em Roma. São palavras de Aneu Floro, em Rerum Romanarum: "Tanto foi a ferocidade da batalha que correu a notícia de que estavam os deuses Castor e Pólux como espectadores, montados em cavalos brancos, e não houve quem duvidasse" (³).
Se essa ideia de que deuses e heróis mortos tinham a capacidade de aparecer para ajudar os vivos fosse coisa só da Antiguidade, eu poderia desejar um bom dia a vocês, leitores, e encerrar o assunto por aqui. Mas não! Vamos às tradições vinculadas à luta de portugueses contra tamoios e franceses no Rio de Janeiro, no Século XVI. Deixo o caso por conta do padre Simão de Vasconcelos, jesuíta famoso por seus escritos publicados no Século XVII, em que relata o incidente da aparição de São Sebastião para ajudar as forças lusas contra os guerreiros nativos da América: "[...] os tamoios todos na mesma conformidade perguntavam depois aos nossos com grande espanto, quem era aquele soldado gentil-homem, que andava armado no tempo do conflito, e saltava intrépido em nossas canoas? "Porque a vista dele", diziam, "nos meteu terror. E foi a causa de fugirmos, igualmente à do incêndio". Foi tido o caso por milagroso. Eu nisto não determino nada; acho porém que fazem força as palavras de José [de Anchieta], que escrevendo dele diz assim: "A mão de Deus andou ali, e mostrou nesta ocasião sua misericórdia e providência: foi medo que Deus nosso Senhor pôs aos índios à vista daquele incêndio; e particular favor do glorioso mártir São Sebastião, que ali foi visto dos tamoios, que perguntavam depois, quem era um soldado que andava armado, muito gentil-homem, saltando de canoa em canoa, e os espantara, e fizera fugir?"." (⁴)
Sem querer assumir a ocorrência de um milagre, Simão de Vasconcelos contou o incidente, mas é razoável supor que, como homem de seu tempo, acreditasse nele. De qualquer modo, e já entrando no lado efetivamente histórico da questão, o governador-geral Mem de Sá, chegando com alguns navios ao Rio de Janeiro no começo de 1567, para desfechar um ataque decisivo contra franceses e indígenas, decidiu que o combate seria travado no dia 20 de janeiro, não por acaso a data em que o calendário católico celebra o soldado romano e mártir São Sebastião. Saíram-se bem os portugueses, ainda que com algumas perdas: "Depois de vários sucessos, encontros e recontros [...] foi entrada e vencida [a fortificação inimiga] com estrago lastimoso, porque dos tamoios não ficou um com vida. Dos franceses morreram dois no conflito, e cinco que houveram às mãos os portugueses, foram pendurados em um pau, para escarmento de outros: à vista de tão triste espetáculo, ficaram tremendo as demais aldeias" (⁵).Coisas da colonização, leitores!
(1) Os gregos se referiam genericamente ao Império Persa, que agregava diversos povos, como sendo dos medos, e, por essa razão, as guerras entre gregos e persas são conhecidas como Guerras Médicas.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) FLORO, Aneu. Epitome Rerum Romanarum. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 53 e 54.
(5) Ibid., p. 55.
Veja também:
Também por aqui, Marta, se usou e abusou do recurso a lendas e milagres para motivar os combatentes e as populações. Na Península Ibérica relembro o aparecimento do discípulo Tiago na luta contra os mouros, em Portugal a lenda da batalha de Ourique. Tudo com boas intenções, pois é claro. :)
ResponderExcluirTenha uma boa semana :)
O exemplo da batalha de Ourique é emblemático. De qualquer modo, um momento decisivo para Portugal e para a nascente monarquia lusitana. Como não ter uma lenda a ele associada?
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