quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Era ou não era o navio de Teseu?

É questão espinhosa e, de acordo com Plutarco (¹), muito debatida na Antiguidade: era ou não era o navio de Teseu? 
Devo explicar. A tradição grega afirmava que, em tempos remotos, os atenienses, depois de uma derrota na guerra, haviam se obrigado a enviar a Creta, como tributo, a cada nove anos, sete rapazes e sete moças, que, lançados no infame Labirinto, seriam devorados pelo Minotauro. Cumpriu-se o acordo algumas vezes, até que o jovem Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, fazendo-se incluir entre os infelizes sorteados para a morte, foi a Cnossos, matou o Minotauro e, com o auxílio de uma estratégia criada por Ariadne, filha de Minos, rei de Creta, conseguiu escapar, retornando vitorioso a Atenas. É coisa lendária, já se vê, ainda que alguns tenham tentado explicar que haveria nisso um fundo de verdade: os jovens atenienses seriam escravizados em Creta, ficando o Minotauro por conta da imaginação. 
Em Vitae parallelae, Plutarco, que se apoiava na tradição oral e em autores cujos escritos, em sua maioria, não chegaram até nós, afirmou que os atenienses, agradecidos aos deuses, trataram de preservar para a posteridade a embarcação de trinta remos que fora usada por Teseu para ir a Creta e de lá retornar. O navio ficou, portanto, ancorado no porto, sem mais ser usado. Ocorre que, pela ação do tempo, uma parte ou outra ia, às vezes, se deteriorando, e era substituída por peça idêntica. Entra aí a questão referida por Plutarco: "O navio foi consertado tantas vezes, que filósofos de várias escolas de pensamento, em seus debates, citavam o caso como exemplo, defendendo alguns que o navio [apesar de tantos consertos] continuava a ser o mesmo que fora a Creta, enquanto outros alegavam que, já não restando nele partes originais, era agora uma nova embarcação." (²)
Ora, leitores, vamos transpor essa história para alguma coisa mais próxima de nós. Suponham que uma das embarcações da frota de Cabral, aquela do descobrimento oficial do Brasil em 1500, houvesse sobrevivido e estivesse ancorada, como relíquia, em um porto, no Brasil ou em Portugal, tanto faz. Com o tempo, para mantê-la viva, as peças danificadas pela maldade dos anos seriam substituídas por outras, mais novas, conservando-se, portanto, a forma, mas não a matéria-prima original. Quinhentos anos depois, pouca coisa restaria sem ser renovada. Seria, ainda assim, o navio da frota cabralina?
Para mais debate, pergunto: nós, quando adultos, somos ainda os mesmos de nossa infância e adolescência? Se sim, ou se não, em que sentido? Não acham, então, que, ainda hoje, o debate dos filósofos da Antiguidade tem lá sua razão de ser?

(1) c. 45 - c. 125.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


2 comentários:

  1. Na minha humilde opinião, Marta, a questão não tem a ver se é, ou não, o verdadeiro barco, mas sim em manter uma memória viva. Tão só.

    Um abraço

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