terça-feira, 18 de agosto de 2020

A natureza do Brasil na visão de autores da Primeira Geração Romântica

Floresta virgem na Província do Rio de Janeiro, de acordo com M. Rugendas (¹)

Na literatura brasileira, a chamada primeira geração romântica exaltou a natureza, chegando às bordas do exagero. Essa foi, como se sabe, a geração que, passadas as turbulências relacionadas ao processo de Independência política do Brasil, encontrou condições que pareciam propícias à construção da nacionalidade. Nesse cenário histórico, o território do País e seus primitivos habitantes foram aclamados como o que poderia haver de mais perfeito no Universo. Não havia muito espaço para enxergar defeitos: Que escritor pensaria em uma menção a mosquitos para torturar os heróis das selvas, fossem eles indígenas ou colonizadores?
A questão, porém, é que o Brasil desse tempo tinha poucos leitores - a maior parte da população era de um analfabetismo absoluto. As obras demoravam a ser publicadas e a alcançar o público, daí certo descompasso temporal em relação ao Romantismo na Europa (²). Para demonstrar como se expressavam os autores românticos desse tempo, vamos a dois exemplos práticos. Comecemos com um trechinho d'A Confederação dos Tamoios (³), de Gonçalves de Magalhães:

"Das Américas plagas venturosas,
Que às mais plagas do mundo nada invejam,
Ufana-se o Brasil como a primeira.
Formosa é sempre aí a Natureza,
Eterna a primavera, o outono eterno.
Em leitos diamantinos pura linfa
Rega seus campos em caudais correntes.
Inúmeras, pujantes catadupas,
Voz dando à solidão, em cristais curvos
De rochedos alpestres precipitam-se,
E de horrendo estridor pejando os ermos,
De vale em vale, entre ásperas fraguras,
Onde atroam também gritos das feras,
Das serpes os sibilos, e os trinados
Dos pássaros, e a voz dos roucos ventos,
Viva orquestra parece a Natureza,
Que a grandeza de Deus sublime exalta!"

Que tal, leitores? Não se assustem. Se era moda falar difícil, escrever, então... Agora, tentem adivinhar quem é o autor e qual é a obra, da qual se extraiu o trecho abaixo:

"Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que, esvasando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo isto respira uma poesia imensa, que enche a alma."

Sim, é Guarani (⁴), de José de Alencar. Nem poderia faltar exemplo deste, concordam? Em alguns casos, o ufanismo nacionalista era levado a tal ponto, que se perdia o senso de realidade. Quando o Romantismo saiu de moda, ao menos como estilo literário, veio a crítica. Olhem o que disse Lima Barreto, já nos dias da República, em Os Bruzundangas (⁵):
"[...] todos os escritores, tanto os mais calmos e independentes, como os de encomenda, cantam a formosa terra da Bruzundanga. 
Os seus acidentes naturais, as suas montanhas, os seus rios, os seus portos são também assim decantados. Os seus rios são os mais longos e profundos do mundo, os seus portos, os mais fáceis ao acesso de grandes navios e os mais abrigados, etc., etc.
Entretanto, quem examinar com calma esse ditirambo e o confrontar com a realidade dos fatos há de achar estranho tanto entusiasmo."
Fica evidente que a paixão nacionalista, característica dos autores cujas obras datam do princípio do Segundo Reinado, dera lugar a decepções amargas. A República não trouxera, nem de longe, o remédio aos males políticos e sociais do País. Mas, é claro, Lima Barreto falava da Bruzundanga, não do Brasil. Compreendem, meus leitores? 
Passa o tempo, mudam as circunstâncias, observo apenas, a título de conclusão, que a natureza, de fato esfuziante (mas com mosquitos e outras pragas), não dá a ninguém licença para ser destruída como se quer; os maus-tratos contra o meio ambiente têm preço. Um preço muito alto, afinal.

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Ainda que esta não seja a única causa.
(3) A primeira edição é de 1856.
(4) 1857.
(5) A primeira edição, póstuma, é de 1922.


3 comentários:

  1. Cada um só vê o que quer ver. :)
    Gostei muito do post, Marta.

    Tenha um excelente dia!

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    Respostas
    1. Certamente! Também a visão, em mais de um sentido, é ideologicamente orientada.

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  2. Hello, Agnieszka Mikolajczyk, have a nice day!

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