terça-feira, 25 de agosto de 2020

Traição no escambo com os índios carijós

Colonizadores europeus e indígenas do Brasil, quando viviam em boa paz, praticavam o escambo, ou troca de mercadorias. Essas mercadorias eram chamadas "resgates", porque se dizia que quem ia ao sertão para tal comércio "ia resgatar". 
O escambo parecia interessante para ambas as partes. Aos indígenas, oferecia a possibilidade da aquisição de ferramentas mais eficientes que as suas, tradicionalmente feitas de pedra, além de objetos de adorno e outras quinquilharias. Aos colonizadores, era um recurso para a obtenção de madeiras, alguns alimentos e objetos de artesanato indígena, como redes, por exemplo. As trocas corriam bem quando nenhuma das partes se sentia lesada, ainda que, como se sabe, as ferramentas oferecidas para resgates - machados, facas, tesouras - nem sempre fossem de boa qualidade, e as roupas - camisas, calções, carapuças - não primassem pela excelência.
No entanto, um episódio relatado pelo jesuíta Simão de Vasconcelos em Vida do Padre João de Almeida mostra bem que, não satisfeitos em fazer as trocas, alguns moradores de Santos, uma das povoações coloniais mais antigas, tiveram a ideia de enganar carijós, indígenas que eram da chamada "região dos Patos", acessível por mar, ao sul da Capitania de São Vicente. Escreveu Simão de Vasconcelos:
"Partindo de Santos certos mancebos [...], chegaram ao porto dos Patos com sua embarcação, a título de seus resgates [...], e antes que corressem os índios ao contrato, trataram este estratagema: pregaram os caixões dos resgates no porão, debaixo da escotilha, de tal maneira que não pudessem ser abalados; vinham os simples, fora de tal engano, e desejosos da mercadoria, concorriam a bandos; os mancebos os mandavam abaixo a carregar os caixões para cima, e como eles estavam fortemente pregados, não podiam os índios abalá-los; chamavam mais e mais companheiros, e quanto mais resistência viam nos caixões, tanto mais entravam, sem receio algum e desacautelados, mas os enganadores sagazes, em vendo a embarcação que estava cheia, deram à vela, fechando as escotilhas, e levaram consigo índios e resgates. [...]." (¹)
É óbvio que o acontecimento não passou despercebido aos carijós que não tinham entrado na embarcação. Nas palavras de Vasconcelos, "[...] bramiam de raiva os que ficavam em terra, vendo a traição, e sentidos da perda e apartamento dos parentes, maridos e filhos, batendo logo os arcos, apregoaram guerra" (²). Por outro lado, pode-se imaginar o rebuliço em Santos, quando, de retorno a embarcação, saltaram em terra os seus ocupantes e deram notícia do que haviam feito. Continua Simão de Vasconcelos:
"Chegaram ao porto de Santos os capitães de tão ilustre feito, e sabido ele, acudiram os padres da Companhia (³), estranhando caso tão enorme; e como era o capitão daquela Capitania por nome Jerônimo Leitão, homem nobre e temente a Deus, repreendeu como devia o latrocínio [sic], e enviou por embaixadores dois dos nossos padres, chamados, um, o padre Agostinho de Matos, e outro, o padre Custódio Pires, aos quais fez entregar os índios com recado seu para os principais (⁴), de como estranhara o caso e o castigara, e fazia restituição e queria continuar as pazes com eles." (⁵)
Duas observações são aqui necessárias. A primeira é relativa a Jerônimo Leitão, o capitão-mor. Nobreza e religiosidade talvez não fossem preponderantes na decisão de devolver os cativos à sua gente. Mais importava, naquela hora, manter o bom relacionamento com os carijós, já que a Capitania de São Vicente vivia às turras com seus vizinhos indígenas, e mais um conflito não era exatamente uma coisa desejável. A segunda questão tem a ver com a atuação dos jesuítas no caso. Por que o padre Simão de Vasconcelos teria trabalho em contar o incidente, não fora para encarecer a atuação de seus irmãos de Ordem? Por outro lado, é sabido o quanto jesuítas se empenhavam pela liberdade dos povos indígenas que haviam catequizado ou que tinham a intenção de ainda catequizar. Nenhuma surpresa, portanto, que entrassem no caso, pressionando, talvez, o capitão-mor a agir. 
Como, afinal, acabou tudo isso? Vamos novamente às palavras de Simão de Vasconcelos:
"[...] Fizeram os padres sua embaixada, e aquietaram os índios por sua língua, de tal maneira que suspenderam os arcos, abrandaram sua ira e abraçando os padres prometeram paz e boa amizade, continuando os resgates e trato com os portugueses. [...]" (⁶)

(1) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, pp. 121 e 122.
(2) Ibid., p. 122.
(3) Referência aos jesuítas.
(4) Líderes tribais dos carijós.
(5) VASCONCELOS, Simão de S. J. Op. cit., p. 122.
(6) Ibid.


2 comentários:

  1. No olhar do nosso tempo, o relato de Simão de Vasconcelos é demasiado tendencioso e moralizador. Mas, nas guerras de influências de outrora, fazem todo o sentido.
    Obrigado, Marta, por dar a conhecer facetas duma colonização que, por aqui, muito poucos sabem.

    Uma boa semana :)

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    1. Não é só por aí que poucos conhecem essas coisas; o mesmo acontece por aqui. Quanto a Simão de Vasconcelos, podemos pôr reparos em seu relato, mas temos de ser justos: se não fosse por ele, provavelmente não haveria registro desse acontecimento.
      Um abraço e um ótimo restante de semana!

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