Dois documentos algo extensos, mas de grande importância, distantes no tempo cerca de vinte e três anos, são fundamentais para o entendimento da origem das atividades industriais no Brasil. O primeiro deles, por ordem da rainha D. Maria I, proibiu a existência de fábricas e manufaturas (¹); o segundo, sob o governo do príncipe regente D. João, não somente autorizou o funcionamento das fábricas, como, ao menos formalmente, salientou sua importância para o desenvolvimento nacional, no contexto das medidas adotadas a partir da vinda da família real portuguesa ao Brasil.
Documento 1 - Proibição de fábricas e manufaturas no Brasil (5 de janeiro de 1785)
"Eu, a rainha, faço saber aos que este alvará virem, que sendo-me presente o grande número de fábricas e manufaturas que de alguns anos a esta parte se tem difundido em diferentes capitanias do Brasil, com grave prejuízo da cultura e da lavoura e da exploração das terras minerais [sic] daquele vasto continente, porque havendo nele uma grande e conhecida falta de população, é evidente que quanto mais se multiplicar o número dos fabricantes, mais diminuirá o de cultivadores, e menos braços haverá que se possam empregar no descobrimento e rompimento de uma grande parte daqueles extensos domínios que ainda se acha inculta e desconhecida [...], e até nas mesmas terras minerais ficará cessando de todo, como já tem consideravelmente diminuído a extração de ouro e diamantes, tudo procedido da falta de braços, que devendo empregar-se nestes úteis e vantajosos trabalhos (²), ao contrário os deixam e abandonam, ocupando-se em outros totalmente diferentes [...], e sendo além disto as produções do Brasil as que fazem todo o fundo e base, não só das permutações mercantis, mas da navegação e do comércio entre os meus leais vassalos habitantes destes reinos e daqueles domínios (³), que devo animar e sustentar em comum benefício de uns e outros [...], hei por bem ordenar que todas as fábricas, manufaturas ou teares [...] excetuando tão somente aqueles dos ditos teares e manufaturas em que se tecem ou manufaturam fazendas grossas de algodão, que servem para o uso e vestuário dos negros, para enfardar e empacotar fazendas e para outros ministérios semelhantes, todas as mais sejam extintas e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos meus domínios do Brasil, debaixo da pena do perdimento em tresdobro, do valor de cada uma das ditas manufaturas ou teares e das fazendas em que nelas ou neles houver, e que se acharem existentes dois meses depois da publicação deste [...]."
Errava a rainha ao supor que o declínio na extração aurífera era causado pela falta de trabalhadores. Desconhecia, por certo, que as técnicas de exploração algo primitivas estavam na raiz do esgotamento precoce das jazidas. Pouco além de duas décadas mais tarde, outro documento apresentava conclusões opostas:
Documento 2 - Permissão para o funcionamento de manufaturas no Brasil (1º de abril de 1808)
"Eu, o príncipe regente (⁴), faço saber aos que o presente alvará virem, que desejando promover e adiantar a riqueza nacional, e sendo um dos mananciais dela as manufaturas, e melhoram e dão mais valor aos gêneros e produtos da agricultura e das artes, e aumentam a população [sic!] dando que fazer a muitos braços e fornecendo meios de subsistência a muitos dos meus vassalos, que por falta deles se entregariam aos vícios da ociosidade [sic!!!], e convindo remover todos os obstáculos que podem inutilizar, e prestar tão vantajosos proveitos, sou servido abolir e revogar toda e qualquer proibição que haja a este respeito no Estado do Brasil e nos meus domínios ultramarinos, e ordenar que daqui em diante seja o país em que habitem, estabelecer todo o gênero de manufaturas, sem excetuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno ou em grande, como entenderem que mais lhes convém, para o que hei por bem revogar o alvará de cinco de janeiro de mil setecentos e oitenta e cinco e quaisquer leis ou ordens que o contrário decidam, como se delas fizesse expressa e individual menção, sem embargo de lei em contrário."
A proibição de 1785 tinha por pretexto, entre outros, a "falta de braços"; o alvará de 1808, que autorizou a existência de fábricas, trazia a alegação de que elas davam "que fazer a muitos braços"; a proibição alegava que as verdadeiras riquezas do Brasil eram a produção agrícola e a mineral, enquanto o alvará de D. João começava por autorizar manufaturas para "adiantar a riqueza nacional", porque davam "mais valor aos gêneros e produtos da agricultura". Sob esse aspecto, o príncipe estava certíssimo. Interesses vários, inclusive no âmbito internacional, haviam levado sua célebre mãe a conclusões opostas e, ao menos sob o ponto de vista do Brasil, equivocadas.
A permissão, todavia, não era suficiente para fazer brotar fábricas. Havia, é claro, a necessidade de capitais para empreendimentos dessa natureza, sem falar que, quem tinha recursos, precisava ter, também, a disposição de arriscá-los em manufaturas cuja prosperidade era incerta. Haveria, nos anos subsequentes, a óbvia concorrência de produtos importados, ingleses, quase sempre, que, pelo Tratado de 1810, passaram a entrar no Brasil em condições vantajosas, e eram, por suposto, de melhor qualidade que aqueles que a indústria nacional, apenas nascente, poderia fornecer.
Vê-se facilmente, pois, que apenas permitir fábricas não bastava. O próprio Governo Joanino procurou passar das palavras à ação, estabelecendo a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, que, por um conjunto de fatores, não chegou a ser um grande sucesso. Em 1817, Ayres de Casal registrou na Corografia Brasílica: "A indústria está a principiar com algumas fábricas: tem já uma de galões, outra de meias de seda, outra de chitas, outra de lonas" (⁵). Era um (re)começo, não há dúvida, mas lento, muito lento.
(1) Dificilmente alguém iria proibir aquilo que não existia. Varnhagen, no Volume II da segunda edição de sua História Geral do Brasil, menciona a existência de uma importante "fábrica de descascar arroz" no Rio de Janeiro (pertencente a Manuel Luiz Vieira e Domingos Lopes Loureiro), de um curtume, também no Rio de Janeiro, e de uma fábrica de lonas na Bahia, isso durante o reinado de D. José I.
(2) Úteis e vantajosos para quem? Se fossem assim tão úteis, não seriam trocados, eventualmente, pelas manufaturas.
(3) Aqui sua majestade começava a dizer alguma verdade, talvez até mais do que a prudência de seu real cargo recomendava. Percebe-se qual era a causa (real) que a inquietava.
(4) Gosto desse D. João. Tinha seus defeitos (todos têm), mas, ressalvadas as especificidades de sua época, era um bom sujeito. Não se pode esperar que, emerso do Absolutismo, raciocinasse segundo a lógica das democracias ocidentais do Século XXI.
(5) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 31.
Na perspectiva das elites de cá, Um Brasil incipiente, do outro lado do Oceano, um esforço menor para acompanhar a "pedalada" dos outros países europeus... Portugal, nesta altura, já estava em completo declínio. E foi o que se viu.
ResponderExcluirUm bom domingo, Marta :)
Façamos um exercício de imaginação (ou de história contrafactual, se preferir). Como seria se Brasil e Portugal não se houvessem separado? Se, assumindo que o desenvolvimento do Brasil seria muito útil também a Portugal, se firmasse um império nos dois lados do Atlântico? Isso dá o que pensar, não?
ExcluirMuito interessante. Há algum tempo tive contato com um documento de regimento interno, do Reinado de Maria I, referente a alguns controles em certas regiões Portugal, uns inclusive relacionados com as fábricas. Como a questão da lenha era meu foco, percebi a existência de uma tentativa de controle sobre as árvores derrubadas para serem transformadas em lenha para uso nas fábricas. Parece que a questão das fábricas e esgotamento de recursos também era motivo de reflexão para a região de Portugal.
ResponderExcluirNo caso do Brasil, o governo português começou a ter preocupação com o esgotamento das matas. Uma das medidas adotadas para deter o desmatamento foi exigir uma distância mínima entre engenhos de açúcar, porque, quando muito próximos, poderiam não ter lenha suficiente para manter o pleno funcionamento da casa das fornalhas. Isso dá uma ideia do grau de devastação causada, sem que as matas fossem, de algum modo, recuperadas.
ExcluirPosteriormente, José Bonifácio, antes de retornar ao Brasil e participar do processo de Independência, chegou a escrever sobre a conveniência da conservação das matas em Portugal. Como você sabe, preocupações ambientais não são uma coisa assim tão recente.