Edifício que serviu como sede da Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema e como residência de seu diretor |
Acreditem, leitores: o país que é um dos maiores produtores mundiais de minério de ferro andou às voltas, durante longo tempo, com dificuldades para estabelecer uma fabricação regular de objetos de ferro. Soa ridículo, é certo, mas essa busca pela "idade do ferro" nada tem de pré-histórica ou remotamente histórica. É coisa muito mais recente.
As tentativas de trabalhar o ferro no interior da Capitania de São Vicente datam dos tempos coloniais, talvez do final do Século XVI. Pedro Taques de Almeida Paes Leme refere na Nobiliarchia Paulistana:
"Cecília Ribeiro foi mulher de Bernardo de Quadro, nobre sevilhano, provedor e administrador das minas de São Paulo e juiz de órfãos, proprietário, senhor do engenho de fundir ferro e aço na Serra de Biraçoyaba [sic] [...]."
O texto de Pedro Taques é um tanto confuso, de modo que não é fácil estipular com exatidão uma data para esse engenho de fundir ferro e aço; sabe-se, porém, que desde fins do Século XVI a região do morro de Araçoiaba despertava interesse para a mineração, e Afonso Sardinha, dentre vários outros, fez por lá explorações com vistas à descoberta de ouro e outros recursos minerais. Teria sido o mesmo Sardinha o fundador da fundição de ferro, pelo que relata Pedro Taques em outra obra, a História da Capitania de São Vicente:
"Nesta serra de Biraçoiaba [sic] houve um grande engenho de fundir ferro, construído à custa do paulista Afonso Sardinha, cuja manobra teve grande calor pelos anos de 1609 [...], com o decurso dos anos se extinguiu o labor da extração do ouro e da fundição de ferro. [...]." (¹)
No entanto, no Século XVIII uma nova fundição de ferro voltou a funcionar no mesmo local, ainda de acordo com Pedro Taques:
"No presente tempo desde o ano de 1766 existe a extração do ferro na dita serra de Biraçoiaba [sic], cuja fábrica se construiu por expensas de alguns acionistas que se uniram, a quem a real grandeza conferiu a graça de fundir o ferro por tempo de dez anos livre de quintos." (²)
Já no Século XIX, estando a Corte no Brasil, o lugar viu nascer um projeto ambicioso (³), que pretendia desenvolver tecnologia para tornar o país autossuficiente na produção de artefatos de ferro: era a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema (⁴). O investimento, para os padrões da época, foi considerável. Diferentes técnicas, sob a supervisão de vários especialistas, foram tentadas, sem que produzissem resultados esplêndidos, e isso por razões as mais diversas, desde incompetência pura e simples até falta de continuidade nos processos que se mostraram promissores, como os ensaiados pelo engenheiro Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen. Nas décadas seguintes, a Fábrica agonizou entre frustradas tentativas de ressurreição e anos de abandono.
Apesar disso, era comum que viajantes nacionais e estrangeiros que visitavam a Província de São Paulo tomassem tempo para ir a Ipanema. Daniel P. Kidder, missionário metodista americano, lá esteve na década de quarenta do Século XIX, ocasião em que observou: "O estabelecimento é um próprio do governo e consiste em seis ou oito prédios onde se faz a redução e fundição de ferro. Existem ainda, uma grande casa onde reside o diretor e diversos outros prédios menores, ocupados pelos operários e suas famílias, das quais, por ocasião de nossa visita, vinte e sete eram alemãs." (⁵) Pôde ver a Fábrica em funcionamento, mas fez constar que "em relatório oficial datado de 1843, perguntava certo ministro, se depois de trinta e quatro anos de experiências, não seria melhor abandonar inteiramente o estabelecimento, pelo menos até que deixasse de constituir fonte de despesas para o erário imperial" (⁶). A questão não era descabida.
Em 1861, quando Augusto-Emílio Zaluar esteve em Ipanema, a situação era ainda pior:
"Fomos visitar a fábrica de ferro de São João de Ipanema. Fica três léguas distante da cidade de Sorocaba, por um caminho quase todo plano e no centro de agradáveis planícies. Está toda desmontada e quase deserta.
Encontramos por toda parte, em lugar da orquestra animadora do trabalho, o silêncio sepulcral da esterilidade.
E no entanto, como tudo que ainda aí existe é grandioso e belo! Os dois fornos altos, os encanamentos de água por toda a fábrica, obra de muita dificuldade e arte, o forno de porcelana, o hospital, as senzalas, a botica, a cadeia, a excelente casa da diretoria, o depósito, servindo atualmente de escritório, e finalmente a casa das máquinas, onde fomos advertidos, de dia, que andássemos com cuidados por causa das cascavéis que se aninham entre os tijolos quebrados do assoalho, tudo está em abandono, em tristeza e solidão!" (⁷)
Posteriormente, a extensão de uma linha ferroviária deu sobrevida ao empreendimento que estertorava, e não mais que isso. Hoje, a Real Fábrica de Ferro é parte da FLONA Ipanema. A impressão de grandiosidade, descrita por Zaluar, não desapareceu. O lugar é, de fato, belíssimo, um dos mais expressivos conjuntos históricos que alguém verá no Brasil (8). A vista, dos pontos de maior altitude, é de tirar o fôlego. Podem achar pérfida a ideia, leitores, mas se a Fábrica de Ipanema tivesse prosperado e, em consequência, recebido seguidas modernizações, hoje não seria possível, a quem visita essa joia, dar um mergulho no passado.
A represa Hedberg, datada de 1811, foi a primeira a ser construída no Brasil para fins de aproveitamento da energia hidráulica |
Os altos-fornos da Fábrica de Ferro de São João de Ipanema datam do chamado Período Joanino |
Interior de um dos fornos da Fábrica de Ferro de Ipanema |
Construído entre 1878 e 1885, sob a supervisão do engenheiro Joaquim de Souza Mursa (daí ser chamado "alto-forno de Mursa"),. este alto-forno, por falta de um equipamento, nunca entrou em operação |
Fornos de carvão construídos em 1913, em mais uma tentativa de reativar a Fábrica de Ferro de Ipanema |
(1) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. História da Capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 130.
(2) Ibid.
(3) A Fábrica de Ipanema não foi a única tentativa feita no Século XIX no sentido de estabelecer a produção regular de artigos de ferro no Brasil. Apenas para constar, houve outra em Minas Gerais. Seria bom que pruridos regionalistas fossem afastados do estudo deste assunto.
(4) Como quase tudo no Período Joanino, recebeu o nome de "São João" em homenagem ao príncipe regente, mais tarde rei com o nome de D. João VI. Na época, a Fábrica de Ferro pertencia aos limites de Sorocaba. Hoje pertence a Iperó - SP.
(5) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 236.
(6) Ibid., p. 238.
(7) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, 1862, pp. 272 e 273.
(8) Registro aqui meu agradecimento à administração e funcionários da FLONA Ipanema que me receberam com o máximo da gentileza e atenção. O zelo na conservação do lugar, a ordem e a limpeza que pude observar em tudo, dão mostras da seriedade e competência dos que lá trabalham.
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