Faço um convite a vocês, leitores: peguem um mapa do Brasil e procurem localizar as primeiras povoações estabelecidas por portugueses nessas terras, ainda no Século XVI. Encontraram São Vicente, Santos, Itanhaém, Salvador? Rio de Janeiro? Vila Velha? Olinda?
Creio que já é suficiente. Digam, agora: o que essas povoações tinham em comum, em se tratando de localização? Vocês acertarão, se concluírem que todas foram estabelecidas junto ao Atlântico (¹). Era mais fácil, após o desembarque, iniciar a ocupação em algum lugar nas proximidades. Se a terra fosse promissora e logo houvesse o que exportar, a existência de um porto satisfatório nas imediações favoreceria o envio de mercadorias à Europa. Não menos importante, se colonizadores recém-chegados não encontrassem uma acolhida gentil da parte dos que já viviam na terra, seria mais rápido voltar às embarcações e procurar outro ponto, provavelmente também na costa, para nova tentativa de fundar uma vila.
Na Antiguidade, porém, houve um político e escritor romano, Marco Túlio Cícero, que levantou dúvidas quanto ao acerto da fundação de cidades litorâneas. Escrevendo ao estilo dos diálogos de Platão, Cícero, em De re publica, imaginou uma conversa em que tomavam parte personagens ilustres de Roma. Assim, na voz de Cipião Africano, expôs o pensamento de que Rômulo (²) teria escolhido a mais favorável localização para a cidade que iria fundar, a alguma distância do mar e, contudo, capaz de efetuar comércio marítimo pelo porto de Óstia, ao qual era ligada por um rio. Todavia, em termos práticos, Cícero não desprezava as vantagens do comércio marítimo, como se vê nesta passagem: "Em meio a essas inconveniências [da localização litorânea] há, todavia, uma grande vantagem, qual seja a de que tudo chega à cidade, de qualquer lugar estrangeiro, pelo porto, e, reciprocamente, tudo o que os campos produzem, pode ser mandado a outros lugares." (³)
Agora, leitores, vamos explorar o que esse sisudo pensador romano via de errado nas cidades portuárias da Antiguidade. Primeiro, supunha perigo em caso de guerra, porque as forças contrárias chegariam mais rápido para um ataque. Cícero acreditava que, vindo o inimigo por terra, sempre haveria tempo para que a notícia chegasse com antecedência, permitindo, assim, a preparação da defesa. Entendia, portanto, que, na hipótese de uma batalha naval pelo controle de uma cidade costeira, a possibilidade de êxito dos defensores seria menor (⁴). Além disso, a proximidade do mar e de um porto favoreceria, em sua concepção, que fossem introduzidos idiomas e costumes estrangeiros, descaracterizando a cultura local. Finalmente, em virtude do comércio, seria fácil a introdução de hábitos de luxo, que iriam minar o estilo de vida austero que entendia ser atributo dos primitivos e verdadeiros romanos.
Será que Cícero tinha razão? O passar dos anos, formando décadas e séculos, se encarregaria de berrar que não. Roma não nascera afixada ao mar, mas os costumes estrangeiros foram importados pelos próprios romanos, que, em contato com outros povos, não vacilaram em copiar tudo o que julgaram interessante. O luxo e o consumo excessivo vieram, também, em decorrência do espólio das guerras e, quando Roma entrou em declínio, foi por terra, e não do mar, que vieram alguns de seus maiores inimigos. Quanto à introdução de idiomas estrangeiros, Cícero se encarregou de negar Cícero: apaixonado pela língua grega, foi um extraordinário divulgador do pensamento dos grandes mestres da filosofia helênica. A distância do mar não fez, neste caso, qualquer diferença.
(1) Embora a colonização tenha começado no litoral, houve exceções notáveis - São Paulo foi uma delas.
(2) Cícero não questionou a lenda da fundação de Roma; também assumiu que os acontecimentos associados aos tempos da realeza eram autênticos. Como se sabe, há ainda muitas dúvidas e questões sem resposta em relação às origens de Roma, embora as contínuas pesquisas ofereçam algumas pistas. Em todo caso, o assunto, aqui, não é a historicidade de Rômulo, mas a conveniência da localização de Roma.
(3) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro Segundo. A citação foi traduzida por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Essa ideia, por si, já oferece um panorama das comunicações na Antiguidade.
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