terça-feira, 2 de outubro de 2018

Execuções "em boca de peça"

Apedrejamento, enforcamento, afogamento, decapitação, fuzilamento, cadeira elétrica, garrote, empalamento, injeção letal... A lista de métodos de execução já inventados pela crueldade humana é enorme. Alguns tinham o propósito de tornar a morte lenta e dolorosa; outros, com intenções supostamente humanitárias, queriam-na rápida e, tanto quanto possível, indolor. Em qualquer caso, a ideia é que a execução servisse (ou sirva) de exemplo.
Dentre os povos antigos, os assírios foram notáveis pela crueldade, e gostavam de empalar inimigos derrotados, mas também usavam outros métodos para execução que, quase sempre, só vinha depois de muita tortura.

Relevo assírio em que o rei é visto executando um prisioneiro de guerra (¹)

Sêneca, o filósofo estoico e professor de Nero, defendeu, nestes termos, a aplicação da pena de morte em Roma: "Aqueles que, com sua vida, não quiseram cooperar com a República, devem ser úteis com a morte" (²). E então, leitores, acham que ele estava certo?
Há tempos, tratei, neste blog, de uma ocasião em que Tomé de Sousa (³) fez executar um índio, amarrando-o à boca de um canhão que, ato contínuo, foi disparado. Ora, esse horripilante espetáculo, cujo objetivo era desencorajar potenciais delinquentes, não foi caso isolado no Brasil. Franceses que tentaram estabelecer uma colônia no Maranhão empregaram a mesma "técnica" - a informação vem de Yves d'Évreux, um capuchinho que esteve no Brasil como missionário nos anos de 1613 e 1614. Dentre outros episódios que registrou, examinemos um, bastante significativo, no qual o sentenciado à morte foi um indígena que, supostamente, se opusera à colonização e à catequese. Capturado, foi condenado à morte "em boca de peça" (⁴), como se dizia. Antes, porém, recebeu o batismo, embora o próprio d'Évreux tenha delegado a outro o ato de ministrar o sacramento, julgando que seria melhor para a imagem dos missionários se fossem associados à misericórdia e não à severidade. Pois bem, a execução assim foi descrita pelo religioso francês:
"Este infeliz condenado recebeu as consolações de muito boa vontade [sic], e antes de caminhar para o suplício disse aos que o acompanhavam: "vou morrer, não mais os verei, não tenho mais medo de Jeropary (⁵) pois sou filho de Deus, não tenho que prover-me de fogo, de farinha, de água, e nem de ferramenta alguma para viajar além das montanhas, onde cuidais que estão dançando vossos pais (⁶). Dai-me porém um pouco de petum (⁷) para que eu morra alegremente, com voz e sem medo". 
[...].
Feito isso, levaram-no para junto da peça montada na muralha do Forte de São Luís, junto ao mar, amarraram-no pela cintura à boca da peça, e o Cardo Vermelho (⁸) lançou fogo à escorva, em presença de todos os principais, dos selvagens e dos franceses, e imediatamente a bala dividiu o corpo em duas porções, caindo uma ao pé da muralha, e a outra no mar, onde nunca mais foi encontrada." (⁹) 
Vejam, leitores, que d'Évreux descreve a execução como se fosse a coisa mais natural deste mundo - não seria capaz de maior doçura se referisse a busca por flores silvestres ou por pequenas conchas marinhas em alguma praia. Será que os homens de seu tempo eram mesmo brutais, ou somos nós que nos tornamos demasiadamente sensíveis?

(1) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853.
(2) Sêneca, De Ira. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(3) Primeiro governador-geral do Brasil.
(4) Referência a um canhão ou outra peça de artilharia.
(5) Figura da mitologia indígena que os missionários identificavam com um demônio.
(6) Lugar onde indígenas supunham ser a residência dos mortos.
(7) Fumo.
(8) Cardo Vermelho era um chefe indígena já catequizado.
(9) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 232 e 233.

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