Mulher lavando roupa, de acordo com James Wells Champney, 1860 (¹) |
"Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois continuamos."
Machado de Assis, Dom Casmurro
Esqueça as eficientes lavadoras eletrônicas - você está agora no Século XIX, leitor, e a roupa suja não será, de jeito nenhum, lavada em casa, ao menos se você for um sujeito de certa importância.
Lavar, passar e engomar a roupa era trabalho para escravas, mas que podia também ser feito por mulheres pobres e de condição livre, em troca de um modesto pagamento.
Na imagine, porém, como regra, a existência de uma lavanderia doméstica. A roupa era lavada, quase sempre, em pequenos riachos, nas imediações das casas ou nos arredores da cidade. Lavadeiras iam juntas a determinados lugares para lavar a roupa e colocá-la para secar ou alvejar, aplicando técnicas da época.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis apresenta, logo nas primeiras páginas, o tio João, personagem de vida e linguagem nada imaculadas, que apreciava dar dois dedos de prosa com as escravas encarregadas de lavar a roupa. É o próprio Brás Cubas, o autor-defunto ou defunto-autor, quem conta:
"Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo [o tio João], no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo as pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra:
- Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!"
Para os naturais da terra tudo isso poderia soar como a coisa mais normal deste mundo. Estrangeiros é que olhavam com curiosidade, talvez mesmo com espanto, para o modo como a elite do Império garantia o uso de roupas limpas. Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista que viveu alguns anos no Brasil durante o Período Regencial, fez observações interessantes sobre o modo como trabalhavam as lavadeiras que teve a oportunidade de ver em ação, durante um passeio a cavalo que fez ao Corcovado:
"Límpido arroio saltita no fundo de um precipício cavado nas fraldas do Corcovado. Passeando-se pelas margens podem-se contemplar inúmeras lavadeiras dentro d'água batendo roupa sobre as pedras que se sobrelevam à corrente. Muitas delas saem da cidade pela manhã, com enorme trouxa sobre a cabeça, e voltam à tarde com toda ela já lavada e enxuta. Em diversos lugares veem-se pequenos fogões improvisados onde preparam as refeições, e grupos de crianças brincando pelo chão, algumas das quais já grandinhas, correm atrás das mães. As menores, porém, vão penduradas às costas das escravas sobrecarregadas com a mala de roupas." (²)
Lavadeiras do Rio de Janeiro (³) |
Não nos esqueçamos também de que, para lavar a roupa em casa, era preciso existir um suprimento regular de água, muito diferente do velho sistema em que escravos traziam-na dos chafarizes ou aguadeiros andavam a vendê-la pelas ruas. A gradual implantação de redes de abastecimento, primeiro nas grandes cidades e, mais tarde, nas menores, forneceu a base para que os velhos costumes quanto à lavagem da roupa sofressem uma reviravolta, ainda que, em não poucos lugares, poços de uso doméstico tenham sido, também, por bastante tempo, uma solução a ser levada em conta.
(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, pp. 111 e 112.
(3) ________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Para que isso fosse possível, o modo como as residências eram construídas precisou sofrer alterações significativas.
(5) A LUA, Ano I, nº 10, Março de 1910.
Veja também:
Num tempo em que a água dos riachos era pura, devia ser uma delícia passar uma tarde a tratar da roupa, com as crianças em volta a brincarem e o tagalerar das mulheres. Certamente, as escravas preferiam essa tarefa a andarem no campo, sob o chicote dos feitores.
ResponderExcluirO mesmo costume, primeiro em riachos, depois em tanques públicos, perdurou durante vários séculos em Portugal.
Abraço, Marta
Ruthia d'O Berço do Mundo
Não tenho dúvida de que era melhor que trabalhar em alguma fazenda, sob sol intenso e com uma enxada na mão. Mas o processo de lavagem e branqueamento da roupa era, naqueles tempos, bastante trabalhoso. Além disso, sempre era escravidão, uma coisa má em si mesma.
ExcluirEncantado com o linguajar das respostas...
ExcluirAbraço,
Renato Lopes
Olá, Renato Lopes,
ExcluirObrigada por visitar o blog História & Outras Histórias. Apareça sempre por aqui!
Já está na hora de acabar com esses jargões repetitivos mentirosos que os
ResponderExcluiresquerdistas da republica criaram no brasil,os negros e mulatos (forros)
também tinham escravos,ricos e pobres também tinham.A escravidão no BR foi
menos cruel do que em outros países.A escravidão era praticada no mundo todo
e não só no Brasil.
Obrigada por sua visita ao blog. Vamos aos fatos, que não dependem da orientação política de quem quer que seja:
Excluira) É verdade que libertos também tinham escravos;
b) É verdade que, no Brasil, pessoas pobres procuravam ter pelo menos um escravo ou escrava para os trabalhos domésticos - isso contribuiu severamente para que o trabalho fosse visto como algo degradante (aconteceu em todas as sociedades escravistas, desde a Antiguidade, e não apenas no Brasil);
c) Não é verdade que a escravidão foi menos cruel no Brasil - veja, nos posts relativos a esse assunto, como era a vida dos escravos nos engenhos de açúcar no Período Colonial, para uma visão mais ampla desta questão;
d) Havia senhores mais "humanos" e mais cruéis, sim, mas isto não tornava a escravidão um bem - é sempre mau e errado que um ser humano tenha o direito de propriedade sobre a vida de outro, independente de tempo e lugar;
e) Um balanço honesto das consequências da escravidão, quer na Antiguidade, quer nos tempos modernos, mostra que ela, por suas consequências, sempre foi ruim. Não houve e jamais haverá escravidão boa.
Excelente blog, Marta. Excelente resposta. Fundamental que não se perca a história. Hoje tive de ajudar minha filha de 12 anos no trabalho sobre o absolutismo e vencer sua dificuldade em entender o motivo de ter de estudar história. Vendo sob outros aspectos, começa a encantar-se com a tarefa. Pedi que observasse que utilizava um idioma para comunicar-se e expressar seu descontentamento, e questionei o que seria de sua capacidade crítica para qualquer assunto se não pudesse, pelo prisma da história, entender por que falamos o mesmo idioma de somente um país europeu específico, ou o que formou esse idioma que utiliza. Sem a história, facilmente retornaria a nosso cotidiano a odiosa escravidão selvagem ou ascenderia ao poder novos Benitos Mussolinis com seus discursos incendiados de luta pelos valores da pátria e da família, seguidos de novos Adolfs com discurso armamentistas e patriotas. Não poderíamos nos proteger de novo de perigosas falácias como essas, que somente serviram de escada de escroques como esses para, utilizando-se de processos legítimos e democráticos, tomar o poder e pervertê-lo em autocráticos totalitários novamente. (Para quem conhece a história, sabe do que me refiro. Não mencionei qualquer personagem presente... o paralelo veio da mente de quem leu...)
ResponderExcluirOlá, Hugo Alexandre, seria fantástico se todas as crianças e adolescentes tivessem pais atenciosos como você, dispostos a acompanhar o processo educativo dos filhos. Parabéns por seu envolvimento nessa tarefa. Pode ter certeza de que, dentre de poucos anos, sua filha será muito grata pelo tempo que dedicou a ela.
ExcluirNinguém, em sã consciência, duvida da importância dos conhecimentos de História para a cidadania consciente. Talvez seja exatamente por isso que, cada vez menos, há tempo e espaço para História nos currículos escolares, não é?
Estou muito feliz em encontrar na Google um blog que dedicou um capítulo às lavadeiras no Brasil. Eu tenho um livro com pinturas do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que veio ao Brasil no início do século XIX. Peça que inclua o seguinte comentário do mesmo, afim de enriquecer o conteúdo. Segue-se abaixo:
ResponderExcluir“[…] Na lavagem, são também empregados excremento de cavalo e sumo de limão para fixar o colorido dos tecidos estampados. As lavadeiras brasileiras, de resto infinitamente mais cuidadosas que as nossas, têm a honra não apenas de devolver a roupa bem passada e arrumada com cuidado dentro de uma cesta, mas também perfumada com flores olorosas, como a rosa das quatro estações (só existe no Rio), o jasmim e a esponjinha, florzinha amarela cujo forte perfume seria desagradável em grandes quantidades”.
Lavandieras au Rio da Larangeira: J. B. DeBret Rio de Janeiro 1826.