quarta-feira, 25 de maio de 2016

O trabalho das lavadeiras na capital do Império do Brasil

Mulher lavando roupa, de acordo com James Wells Champney, 1860 (¹)

"Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois continuamos."

Machado de Assis, Dom Casmurro

Esqueça as eficientes lavadoras eletrônicas - você está agora no Século XIX, leitor, e a roupa suja não será, de jeito nenhum, lavada em casa, ao menos se você for um sujeito de certa importância.
Lavar, passar e engomar a roupa era trabalho para escravas, mas que podia também ser feito por mulheres pobres e de condição livre, em troca de um modesto pagamento. 
Na imagine, porém, como regra, a existência de uma lavanderia doméstica. A roupa era lavada, quase sempre, em pequenos riachos, nas imediações das casas ou nos arredores da cidade. Lavadeiras iam juntas a determinados lugares para lavar a roupa e colocá-la para secar ou alvejar, aplicando técnicas da época.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis apresenta, logo nas primeiras páginas, o tio João, personagem de vida e linguagem nada imaculadas, que apreciava dar dois dedos de prosa com as escravas encarregadas de lavar a roupa. É o próprio Brás Cubas, o autor-defunto ou defunto-autor, quem conta:
"Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo [o tio João], no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo as pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra:
- Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!"
Para os naturais da terra tudo isso poderia soar como a coisa mais normal deste mundo. Estrangeiros é que olhavam com curiosidade, talvez mesmo com espanto, para o modo como a elite do Império garantia o uso de roupas limpas. Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista que viveu alguns anos no Brasil durante o Período Regencial, fez observações interessantes sobre o modo como trabalhavam as lavadeiras que teve a oportunidade de ver em ação, durante um passeio a cavalo que fez ao Corcovado:
"Límpido arroio saltita no fundo de um precipício cavado nas fraldas do Corcovado. Passeando-se pelas margens podem-se contemplar inúmeras lavadeiras dentro d'água batendo roupa sobre as pedras que se sobrelevam à corrente. Muitas delas saem da cidade pela manhã, com enorme trouxa sobre a cabeça, e voltam à tarde com toda ela já lavada e enxuta. Em diversos lugares veem-se pequenos fogões improvisados onde preparam as refeições, e grupos de crianças brincando pelo chão, algumas das quais já grandinhas, correm atrás das mães. As menores, porém, vão penduradas às costas das escravas sobrecarregadas com a mala de roupas." (²)

Lavadeiras do Rio de Janeiro (³)
Já veem os leitores que, como disse ao princípio, ao menos nos dias do Império, roupa suja não era mesmo lavada em casa. Gracejos à parte, o fim da escravidão forçou uma mudança de mentalidade. Embora muita gente ainda contratasse os serviços de uma lavadeira, gradualmente ganhou espaço a ideia de que, afinal, seria muito mais higiênico se as roupas fossem lavadas e passadas dentro de casa, de preferência por alguém da própria família (⁴), com essa ou aquela marca de sabão, cuja propaganda aparecia nos jornais e nas revistas da época - uma prova de que é possível achar argumentos para quase tudo, principalmente quando interesses (comerciais ou não) estão em jogo.
Não nos esqueçamos também de que, para lavar a roupa em casa, era preciso existir um suprimento regular de água, muito diferente do velho sistema em que escravos traziam-na dos chafarizes ou aguadeiros andavam a vendê-la pelas ruas. A gradual implantação de redes de abastecimento, primeiro nas grandes cidades e, mais tarde, nas menores, forneceu a base para que os velhos costumes quanto à lavagem da roupa sofressem uma reviravolta, ainda que, em não poucos lugares, poços de uso doméstico tenham sido, também, por bastante tempo, uma solução a ser levada em conta.

Propaganda de sabão na revista A Lua, 1910 (⁵)

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, pp. 111 e 112.
(3) ________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Para que isso fosse possível, o modo como as residências eram construídas precisou sofrer alterações significativas.
(5) A LUA, Ano I, nº 10, Março de 1910.


Veja também:

9 comentários:

  1. Num tempo em que a água dos riachos era pura, devia ser uma delícia passar uma tarde a tratar da roupa, com as crianças em volta a brincarem e o tagalerar das mulheres. Certamente, as escravas preferiam essa tarefa a andarem no campo, sob o chicote dos feitores.
    O mesmo costume, primeiro em riachos, depois em tanques públicos, perdurou durante vários séculos em Portugal.
    Abraço, Marta
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Não tenho dúvida de que era melhor que trabalhar em alguma fazenda, sob sol intenso e com uma enxada na mão. Mas o processo de lavagem e branqueamento da roupa era, naqueles tempos, bastante trabalhoso. Além disso, sempre era escravidão, uma coisa má em si mesma.

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    2. Encantado com o linguajar das respostas...
      Abraço,
      Renato Lopes

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    3. Olá, Renato Lopes,
      Obrigada por visitar o blog História & Outras Histórias. Apareça sempre por aqui!

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  2. Já está na hora de acabar com esses jargões repetitivos mentirosos que os
    esquerdistas da republica criaram no brasil,os negros e mulatos (forros)
    também tinham escravos,ricos e pobres também tinham.A escravidão no BR foi
    menos cruel do que em outros países.A escravidão era praticada no mundo todo
    e não só no Brasil.

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    1. Obrigada por sua visita ao blog. Vamos aos fatos, que não dependem da orientação política de quem quer que seja:

      a) É verdade que libertos também tinham escravos;

      b) É verdade que, no Brasil, pessoas pobres procuravam ter pelo menos um escravo ou escrava para os trabalhos domésticos - isso contribuiu severamente para que o trabalho fosse visto como algo degradante (aconteceu em todas as sociedades escravistas, desde a Antiguidade, e não apenas no Brasil);

      c) Não é verdade que a escravidão foi menos cruel no Brasil - veja, nos posts relativos a esse assunto, como era a vida dos escravos nos engenhos de açúcar no Período Colonial, para uma visão mais ampla desta questão;

      d) Havia senhores mais "humanos" e mais cruéis, sim, mas isto não tornava a escravidão um bem - é sempre mau e errado que um ser humano tenha o direito de propriedade sobre a vida de outro, independente de tempo e lugar;

      e) Um balanço honesto das consequências da escravidão, quer na Antiguidade, quer nos tempos modernos, mostra que ela, por suas consequências, sempre foi ruim. Não houve e jamais haverá escravidão boa.

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  3. Excelente blog, Marta. Excelente resposta. Fundamental que não se perca a história. Hoje tive de ajudar minha filha de 12 anos no trabalho sobre o absolutismo e vencer sua dificuldade em entender o motivo de ter de estudar história. Vendo sob outros aspectos, começa a encantar-se com a tarefa. Pedi que observasse que utilizava um idioma para comunicar-se e expressar seu descontentamento, e questionei o que seria de sua capacidade crítica para qualquer assunto se não pudesse, pelo prisma da história, entender por que falamos o mesmo idioma de somente um país europeu específico, ou o que formou esse idioma que utiliza. Sem a história, facilmente retornaria a nosso cotidiano a odiosa escravidão selvagem ou ascenderia ao poder novos Benitos Mussolinis com seus discursos incendiados de luta pelos valores da pátria e da família, seguidos de novos Adolfs com discurso armamentistas e patriotas. Não poderíamos nos proteger de novo de perigosas falácias como essas, que somente serviram de escada de escroques como esses para, utilizando-se de processos legítimos e democráticos, tomar o poder e pervertê-lo em autocráticos totalitários novamente. (Para quem conhece a história, sabe do que me refiro. Não mencionei qualquer personagem presente... o paralelo veio da mente de quem leu...)

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    1. Olá, Hugo Alexandre, seria fantástico se todas as crianças e adolescentes tivessem pais atenciosos como você, dispostos a acompanhar o processo educativo dos filhos. Parabéns por seu envolvimento nessa tarefa. Pode ter certeza de que, dentre de poucos anos, sua filha será muito grata pelo tempo que dedicou a ela.
      Ninguém, em sã consciência, duvida da importância dos conhecimentos de História para a cidadania consciente. Talvez seja exatamente por isso que, cada vez menos, há tempo e espaço para História nos currículos escolares, não é?

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  4. Estou muito feliz em encontrar na Google um blog que dedicou um capítulo às lavadeiras no Brasil. Eu tenho um livro com pinturas do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que veio ao Brasil no início do século XIX. Peça que inclua o seguinte comentário do mesmo, afim de enriquecer o conteúdo. Segue-se abaixo:

    “[…] Na lavagem, são também empregados excremento de cavalo e sumo de limão para fixar o colorido dos tecidos estampados. As lavadeiras brasileiras, de resto infinitamente mais cuidadosas que as nossas, têm a honra não apenas de devolver a roupa bem passada e arrumada com cuidado dentro de uma cesta, mas também perfumada com flores olorosas, como a rosa das quatro estações (só existe no Rio), o jasmim e a esponjinha, florzinha amarela cujo forte perfume seria desagradável em grandes quantidades”.
    Lavandieras au Rio da Larangeira: J. B. DeBret Rio de Janeiro 1826.

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