domingo, 22 de dezembro de 2013

O padre Anchieta fazia alpargatas

Os europeus que, no século XVI, iniciaram a colonização do Brasil, tiveram, não necessariamente por opção, mas por razões de sobrevivência, de aprender com os povos indígenas novos hábitos e costumes. Isso significava o uso, como alimento, de coisas que até então desconheciam, dormir em redes (como os índios) e até mesmo novos modos de preparar o vestuário e construir habitações. Afinal de contas, que poderiam fazer quando roupas e calçados, trazidos do Reino, após muito uso devessem ser substituídos?
Como parte ativa no processo de colonização, os jesuítas trataram, em suas tentativas de aproximar-se dos nativos para doutriná-los, de viver tanto quanto possível segundo os hábitos e recursos locais, enquanto se esforçavam para aprender a língua da terra, instrumento indispensável à catequese.
Nas areias de Iperoig em Ubatuba (SP),
encontra-se este monumento em
homenagem 
ao Padre José de Anchieta
 que,
no Século XVI,
foi missionário no Brasil.
É possível, hoje, conhecer algo das dificuldades e soluções encontradas pelos religiosos europeus se lermos as cartas que enviavam e nas quais, com uma periodicidade quase sempre anual, davam conta a seus superiores das atividades, dos progressos e mesmo dos fracassos em relação ao que empreendiam na América. Assim, em 1554, em carta mandada a Coimbra, José de Anchieta escreveu:
"Agora estou aqui em São Vicente, que vim com nosso padre Manuel da Nóbrega para despachar estas cartas. Demais disso tenho aprendido um ofício que me ensinou a necessidade, que é fazer alpergatas (¹), e sou já bom mestre e tenho feitas muitas aos irmãos, porque se não pode andar por cá com sapatos de couro pelos montes." (²)
E em outra carta, desta vez tendo por destinatário o Geral da Companhia de Jesus, datada de julho de 1860, o mesmo Anchieta relatou:
"... fazemos vestidos, sapatos, principalmente alpercatas de um fio como cânhamo, que nós outros tiramos de uns cardos lançados n'água e curtidos, cujas alpercatas são mui necessárias pela aspereza das selvas e das grandes enchentes d'água." (³)
Esse costume de usarem os padres as alpargatas não era, no entanto, devido apenas às condições do terreno em que andavam. Devia-se, também, à falta de calçados como os que estavam disponíveis no Reino. Isso registrou o mesmo Anchieta, muito mais tarde (⁴), ao falar do Padre Diogo Jacome:
"Era isto mui comum naqueles tempo trabalharem os Irmãos de saberem alguns ofícios proveitosos para a comunidade. E assim o dito Padre (⁵) e outros Irmãos aprenderam a fazer alpargatas, porque então não havia sapato nem meia." (⁶)
Ora, em terras do Brasil, no Século XVI, já era bastante, para quem se aventurava pelos sertões, dispor de umas alpargatas para os pés. Afinal, não será demais lembrar que a maioria dos índios dispensava qualquer calçado. Sendo muito hábeis em andar descalços, ensinaram aos portugueses o modo como o faziam, e que, posteriormente, foi adotado pelas levas de bandeirantes que cruzaram o interior da Colônia.

(1) O termo "alpargata", de mesmo significado, é mais usual atualmente no português falado no Brasil.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 63.
(3) Ibid., p. 151.
(4) A data exata é desconhecida, mas as circunstâncias do texto apontam para a segunda metade da década de 1580.
(5) Refere-se a Diogo Jacome.
(6) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Op. cit.,  pp. 482 e 483.


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