quarta-feira, 16 de setembro de 2015

As araras de estimação do padre José de Anchieta

Araras-canindé (Ara ararauna) - Seriam parentes das araras que acompanhavam
o Padre José de Anchieta?

Vocês, leitores, têm ou já tiveram algum animal de estimação? Talvez possamos dizer que o Padre José de Anchieta (¹) tinha: eram duas araras-canindé, que lhe faziam companhia quando ia ele de um lugar a outro em seus afazeres missionários.
Ora, não imaginem que isso é excesso de imaginação. Na segunda metade do Século XVII o Padre Simão de Vasconcelos escreveu uma biografia intitulada Vida do Venerável Padre José de Anchieta, cujo objetivo era reforçar a campanha em favor da canonização de seu irmão de Ordem, iniciada em 1617 (²). A obra é uma vasta coleção de narrativas que hoje a maioria de nós talvez considere como lendas piedosas, respeitando-se, porém, a opinião de quem possa entendê-las como relatos de eventos sobrenaturais. Pois bem, voltando ao caso das araras de estimação, creio que quem conhece os hábitos dessas aves irá concordar que, ressalvado algum exagero, a coisa bem pode ter acontecido, não sendo preciso, para tanto, a interferência de fatores miraculosos. O elemento curioso fica por conta de uma discreta sugestão de que Anchieta fosse, talvez, um pregador demasiado falante:
"Dos canindés se afirma que andavam tão prontos à sua obediência como se foram dois servos seus. Quando havia de ir pregar José a outras igrejas da Vila, acompanhavam-no, como se tiveram razão, a pé e voando, e subindo ele ao púlpito, subiam eles ao campanário e perseveravam esperando enquanto o Padre pregava, e o que mais admira é que, quando era longo na pregação, grasnavam alto para que os ouvissem e acabasse. E eram tão entendidos do Pregador, que por vezes foi ouvido responder-lhes do púlpito, dizendo: "Logo acabaremos, logo acabaremos". E outra vez disse ao auditório: "É bem que acabemos, que têm razão", aludindo às vozes de seus pássaros, que ele entendia e lhe serviam de admonitores da parte de Deus." (³)
Interpretem essa história como melhor entenderem, leitores. Mas, convenhamos, ela não deixa de ter seu lado divertido.
Onde teriam vivido essas araras-canindé que eram tão afeiçoadas a Anchieta? Embora o padre Simão de Vasconcelos não seja explícito, o rumo da narrativa sugere que foi no litoral no Espírito Santo, onde Anchieta passou os últimos anos de vida. Se for assim, e admitindo que a história seja autêntica, poderemos entender que, no Século XVI, as araras-canindé eram encontradas em uma área mais ampla do que aquela que é, hoje, considerada seu habitat no Brasil.
Ao narrar as aventuras de seu biografado, o padre Simão de Vasconcelos não poucas vezes relatou conversas de Anchieta com animais, afirmando que sempre o fazia "em língua brasílica", ou seja, no falar indígena para o qual, por ter tão bem aprendido, chegara a escrever uma gramática. Talvez a intenção de Vasconcelos fosse, ao exaltar as virtudes heroicas de Anchieta, incluir no relato de sua vida uma similaridade ao se atribui a um canonizado muitíssimo famoso, falecido em Assis no ano de 1226 - até porque, no Brasil do Século XVI, não faltavam aves e animais com que alguém a eles afeito, pudesse, querendo, conversar.

(1) 1534 - 1597.
(2) O longuíssimo processo, iniciado em 1617, resultou na beatificação em 22 de junho de 1980 e na canonização, finalmente, em 3 de abril de 2014. 
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, pp. 333 e 334.


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