Um crime duplo que abalou São Paulo no Século XVII
Podem estar certos os leitores que o episódio de hoje não foi extraído de nenhum jornal sensacionalista da atualidade - mas bem poderia figurar em algum, não fora o fato de ter ocorrido no Século XVII. Como verão, é história das mais escabrosas, contada por Pedro Taques de Almeida Paes Leme em sua Nobiliarchia Paulistana.
Alberto Pires, casado com Leonor de Camargo, foi-se a celebrar o "entrudo", o carnaval daqueles tempos. Diz Pedro Taques:
"Foi Alberto Pires extremosamente amante de sua mulher, em um dos dias de carnes tolendas, como chamam em Castela, e de entrudo no Brasil, quando Alberto Pires, em brinquedos dos que o inveterado costume destes dias introduziu, sem desculpa na maior parte dos reinos da Europa, sucedeu receber Leonor de Camargo Cabral, do próprio marido, uma limitada pancada [sic!!!] na fonte da parte esquerda, e caiu no mesmo instante morta. Esta casualidade não teve testemunhas de vista, que acreditassem a inocência do sucesso, para ficar o marido livre da suspeita de homicida."
Bem avisei ao leitores que a história era cabeluda. Do modo como narrou Taques, dá-se a entender que a desdita ocorreu por acidente. Mas não para por aí...
O próprio Pedro Taques reconhecia não ter melhores testemunhos sobre o caso senão os depoimentos de idosos que se lembravam do acontecido. Diz, no entanto, que era corrente em São Paulo que, desesperado com a morte da mulher, Alberto Pires teve a ideia sinistra de "armar uma cena" para inocentar-se do crime. Convidou parentes para celebrar o entrudo em sua casa e, estando um seu cunhado já perto, matou-o e colocou o corpo ao lado do de D. Leonor de Camargo. Em seguida, reuniu a família e alegou ter surpreendido a esposa e o cunhado em flagrante adultério. Em "defesa da honra", teria matado a ambos.
Qual foi a reação dos circunstantes a tamanha lorota? Conta Pedro Taques:
"Mandou logo chamar aos seus parentes a toda pressa e aceleração, e acudindo muitos, a estes publicou que, em desagravo da sua honra, matara os adúlteros que lhe ofendiam a pureza do tálamo sacramental, cujos corpos estavam no mesmo lugar onde tinham cometido a torpeza. Sem proceder o mais mínimo acordo de reflexão se arrebataram os ânimos enfurecidos dos parentes do agressor Alberto Pires, que lhe aplaudiram a insolência como ação briosa, com que lavara a mancha da sua desonra no próprio sangue daqueles adúlteros."
Não se escandalizem os leitores com os costumes que vigoravam naqueles tempos; nós seguimos adiante, já que o caso está longe de terminar. Havia também o outro lado, o partido dos que haviam morrido... Continua Pedro Taques:
"Então os irmãos dos mortos, em numeroso corpo de armas (cada partido solicitava o despique pela dor que lhe ocupava) procuraram também lavar a ofensa de sua mágoa no mesmo sangue do autor dela, tirando-se-lhe a vida a ferro frio."
É possível imaginar o ambiente na pequena São Paulo de fins do Século XVII diante desses acontecimentos? Alberto Pires, que assassinara a mulher e o cunhado, fugiu e ocultou-se em casa de sua mãe, Dona Inês Monteiro, uma fazendeira rica e influente. Ainda assim os que lhe desejavam a morte foram à fazenda pelas horas da noite, ameaçando incendiar a casa e demais instalações se o criminoso não lhes fosse entregue. Por respeito às palavras veementes de Dona Inês, acabaram desistindo (momentaneamente) de que a justiça se fizesse ali mesmo. Alberto Pires foi preso e depois levado a Santos, de onde, por mar, devia seguir para o Rio de Janeiro, e dali para a Bahia, diante de cujo tribunal responderia por seus atos.
A poderosa mãe-fazendeira seguiu por terra, imaginando manobrar pela libertação do filho, conforme registrou Pedro Taques:
"D. Inês Monteiro, logo que de São Paulo descera para a vila de Santos o desgraçado filho, se pôs em marcha por terra a demandar a vila de Paraty, e passar-se à cidade do Rio de Janeiro (onde por parte de seu pai tinha parentes da família de Alvarengas de avultado merecimento), com firmes esperanças de libertar seu filho à custa de toda despesa de dinheiro."
Apenas uma rápida observação - estão notando os leitores as práticas da época para obstar a ação da Justiça? Então, respirem fundo, que já nos avizinhamos ao desfecho.
Os tremendos esforços de Dona Inês Monteiro foram completamente frustrados. A pequena embarcação que levava Alberto Pires enfrentou contratempos no mar e, em lugar de ir diretamente ao Rio de Janeiro, aportou na Ilha Grande. Logo a notícia da chegada de Dona Inês Monteiro ao Rio foi dada aos vingadores (e vingativos) parentes ofendidos, que não perderam a ocasião que se lhes ofereceu no momento em que o réu saía da Ilha Grande com destino ao Rio de Janeiro, já que, alcançando-o, "lhe puseram ao pescoço uma grande pedra e o lançaram vivo ao mar, em cujas águas teve o seu sepulcro, e para logo fizeram com que a embarcação tomasse o rumo para a vila de Santos, o que executou o mestre da sumaca, ou porque o temor o venceu, ou o dinheiro o obrigou."
Pedro Taques, conquanto admitisse ter dúvidas quanto a detalhes do sucedido, tinha a virtude de não economizar palavras quando se tratava de contar as velhacarias que sabia terem ocorrido em sua amada São Paulo, até porque acontecimentos da mesma estirpe não eram raros no Brasil de séculos atrás.
É isso, por hoje, senhores leitores. Têm aqui o ponto final.
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Uma digníssima novela. E no Carnaval de hoje, tudo tranquilo? Recebi aqui em Guimarães um carioca no domingo passado, fugido da confusão do Carnaval.
ResponderExcluirBeijinhos, uma doce semana
Ruthia d'O Berço do Mundo
Detesto carnaval. Por aqui quase tudo tranquilo. Digo "quase" porque à noite há muito barulho que vem do setor de clubes. Espero que isso acabe logo.
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