segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Circunstâncias em que era possível cancelar a alforria de um escravo liberto

Um dos modos pelos quais um escravo podia vir a ser um homem livre era a alforria, isto é, a concessão de liberdade definitiva, por decisão de seu senhor, confirmada por escritura legalmente válida. Porém, sob algumas circunstâncias, as Ordenações do Reino (¹) permitiam a revogação da carta de alforria. Lê-se no Livro 4º, Título LXIII, § 7:
"Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, cometer contra quem o forrou alguma ingratidão pessoal em sua presença ou em ausência, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá esse patrono revogar a liberdade que deu a esse liberto e reduzi-lo à servidão em que antes estava, e bem assim por cada uma das outras causas de ingratidão (...)."
Convenhamos, "ingratidão pessoal" acabava soando como coisa demasiadamente vaga, tornando instável a situação do liberto. No Brasil, a melhor coisa que um liberto por alforria da parte do senhor podia fazer (não era dos fatos mais comuns), era "dar no pé", e ir viver sua vidinha bem longe do tal patrono.
No Reino havia ainda uma outra razão pela qual a alforria poderia ser revertida, conforme o Livro 4º, Título LXIII, § 8:
"E bem assim, sendo o patrono posto em cativeiro, e o liberto o não remir, sendo possante para isso, ou estando em necessidade de fome e o liberto lhe não socorrer a ela, tendo fazenda, por que o possa fazer, poderá o patrono revogar a liberdade ao liberto, como ingrato, e reduzi-lo à servidão, em que antes estava."
Explica-se: na era das grandes navegações, e mesmo mais tarde, vez por outra uma embarcação lusitana caía em poder de "mouros" do norte da África, que aprisionavam seus ocupantes e, para devolvê-los, pediam resgate. Então, se um liberto houvesse enriquecido e seu antigo senhor estivesse refém dos mouros, ficava o ex-escravo obrigado a contribuir para que o resgate fosse pago. Resta saber, num caso desses, se o liberto resolvesse não colaborar, como é que o tal senhor feito prisioneiro, poderia, afinal revogar a alforria... (²)

(1) Conforme edição de 1824 da Universidade de Coimbra. As Ordenações foram compiladas e publicadas pela primeira vez no início do Século XVII. Assim, vigoraram no Brasil durante o Período Colonial. Após a Independência, muitos juristas brasileiros ainda recorriam a elas.
(2) Entende-se que a revogação sucederia em caso de que algum outro pagasse o resgate, de modo que o senhor pudesse voltar ao Reino.


Veja também:

2 comentários:

  1. Hahaha, adorei Marta. No primeiro caso, distância higiénica era tudo. No segundo, era circunstância para pedir uma "folga" aos mouros para ir até ao Reino revogar a alforria do ingrato.
    A História está repleta de episódios deliciosos como este.
    Abraço, querida, sempre bom ler-te
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Quando decidir fazer O Caminho, avise-me. Quem sabe ganho coragem para lhe fazer companhia!

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    Respostas
    1. Para os libertos, era, como dizem no interior de São Paulo: "Pernas, para que vos quero!..." Rsrsrssss
      Antes de resolver seriamente fazer o Caminho de Santiago, vou ter que treinar e muito. Estou habituada a trilhas difíceis, mas aí o maior problema são os muitos quilômetros. Já faz algum tempo que não ando mais de 20 ou 30 km em um só dia. Mesmo com botas confortáveis, não dá pra evitar bolhas nos pés. Mas é questão de treino, mesmo.

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