terça-feira, 29 de junho de 2021

Como devia ser escrita a carta de alforria de um escravo a quem o proprietário concedia a liberdade

Escravos, de acordo com Thomas Ender (¹)

Um escravo podia conquistar a liberdade se, de algum modo, obtivesse recursos para isso, por conta própria ou com a ajuda de alguém; podia, também, vir a ser livre se seu proprietário decidisse alforriá-lo (²). Neste caso, era preciso lavrar uma carta de alforria, documento com valor legal que garantia o direito à liberdade para a pessoa anteriormente cativa.
Uma carta de alforria devia ser redigida aproximadamente assim:
"Por este por mim feito e abaixo assinado, declaro que sou senhor e possuidor de um [uma] escravo [escrava] de nome [nome do libertando], filho [filha] de minha escrava [fulana], ao qual [nome do escravo] de minha livre e espontânea vontade, e sem constrangimento de pessoa alguma, concedo desde já a liberdade; e de fato liberto fica de hoje para sempre, a fim de que desde já possa gozar de sua liberdade, como se fora de ventre livre, e como livre que é por virtude deste meu presente escrito, sem que ninguém o possa chamar jamais à escravidão, por qualquer pretexto que seja, pois que eu como senhor que sou do dito [nome do escravo], lhe concedo a mesma liberdade, sem cláusula ou condição, e quero que este meu escrito lhe sirva de prova, e lhe seja profícuo em todo o tempo. E para firmeza e segurança fiz este, que assino com a minha letra e sinal na presença de [testemunha 1] e [testemunha 2], testemunhas que assistiram (ou por não saber escrever pedi ao senhor [nome do escrivão] que este por mim escrevesse e assinasse em meu nome e para mais segurança assinaram também as duas testemunhas [1 e 2], que foram presentes a este ato da declaração de minha vontade, e eu [escrivão] que este fiz a rogo do Sr. [nome do proprietário], também por ele assino com as duas testemunhas acima declaradas).
Rio de Janeiro, ___ de _______ de 18__." (³)
Da análise desse documento decorrem algumas considerações:
  • Sendo, a partir de 1850, efetivamente proibido o tráfico de africanos para escravização, entende-se que, para declarar legítima a posse de um escravo, era preciso atestar seu nascimento no Brasil (e não que fora importado da África), de preferência como filho de uma escrava pertencente ao mesmo senhor.
  • Tinha muita importância a observação de que a alforria era irreversível, porque, no Século XIX, havendo falta de legislação específica do Brasil, era usual que se aplicassem, ainda, as Ordenações do Reino (⁴), nas quais se admitia, em alguns casos, a reversão da liberdade concedida a um cativo. Além disso, a declaração de irreversibilidade era relevante no caso do falecimento do antigo senhor, pela possibilidade de que algum herdeiro tentasse reaver a posse do escravo anteriormente liberto.
  • Finalmente, não devia ser nada incomum que o documento de alforria fosse escrito e assinado a pedido de um proprietário que não sabia escrever. A maior parte da população do Brasil, no Século XIX, passava a vida toda tão analfabeta quanto estreara no mundo, e mesmo no Rio de Janeiro, capital do Império, essa condição não era nenhuma raridade.

(1) O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) À medida que o Século XIX avançava, as alforrias por iniciativa de proprietários de escravos foram se tornando mais frequentes, em especial nas áreas urbanas. Estava claro que a escravidão não poderia subsistir por muito tempo, e ter escravos em casa passou, gradualmente, a ser considerado um sinal de atraso, que não convinha às pessoas de "boa sociedade".
(3) Adaptado de Conselheiro Fiel do Povo ou Coleção de Fórmulas 3ª ed., vol. I. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1860, pp. 118 e 119.
(4) Mesmo quando a Independência já havia ocorrido há décadas.


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