Escravos podiam, no Brasil, ter um profissão específica - já tratei desse assunto aqui no blog. O que vou mostrar, hoje, é que esse costume era muito antigo, não se restringindo apenas aos dias do Império, quando a escravidão, afinal de contas, já declinava.
Pedro Taques de Almeida Paes Leme escreveu a sua Nobiliarchia Paulistana no Século XVIII. Tratando de um sujeito por nome João Pires das Neves, falecido em São Paulo no ano de 1720, informou:
"João Pires das Neves foi nobre cidadão de São Paulo, muito abastado e com grande tratamento. A sua fazenda era um como arraial, pelas casas que tinha, com numerosa escravatura de pretos e mulatos, e estes oficiais de artes fabris e mecânicas, os quais trajavam calçados."
Se tivermos paciência para dissecar esse trechinho, poderemos chegar a algumas constatações interessantes.
Em fins do Século XVII e início do XVIII a escravidão era usual na Capitania de São Vicente, imperando a escravidão de índios, não de negros e mulatos. Temos, portanto, um caso que fugia à regra, uma vez que os escravos de João Pires das Neves, de acordo com Pedro Taques, eram "pretos e mulatos". Para isso era preciso que fosse muito rico, já que a carência de moeda corrente em São Paulo é que, ao menos em parte, levava os colonizadores à escravização de índios, na impossibilidade de comprar africanos.
Acrescenta a Nobiliarchia que os escravos de João Pires eram "oficiais de artes fabris e mecânicas". Para manter cativos especializados em dedicação exclusiva a certas tarefas, devia haver muito trabalho para eles o tempo todo, o que nos leva a conjecturar se não atenderiam a serviços de terceiros, sendo a renda em proveito do ilustre fazendeiro. É certo que não se pode afirmar tal coisa, mas também seria imprudência descartar completamente a possibilidade, uma vez que há registros, ainda que não muito numerosos, de gente que mantinha oficinas nas quais escravos eram os "funcionários".
Finalmente, há o detalhe de que os escravos "trajavam calçados". Pedro Taques não mencionaria este pormenor não fora o fato de que era absolutamente incomum. No Brasil, o costume era que escravos andassem descalços, a fim de evidenciar diante da sociedade a sua condição servil. É bom recordar: o costume não foi inventado na Colônia. Vinha dos antigos romanos, que assim o faziam porque, de outro modo, poderia ser difícil, à primeira vista, distinguir um homem livre de um escravo. Afinal, em Roma não havia a possibilidade, com raríssimas exceções, de estigmatizar escravos com base na cor da pele. Além disso, muitos escravos tinham origem social elevada (gregos, por exemplo, derrotados em combate) e eram ocupados na educação de jovens patrícios romanos. A ausência de calçados era, então, a marca da perda da liberdade.
Por tudo isso, pode-se dizer, em conclusão, que, de fato, João Pires das Neves e seus escravos deviam ser, senão um espanto, ao menos um componente algo incomum na pequena São Paulo de seus dias.
Debret também retratou uma dessas exceções, em que, aos escravos, permitia-se o uso de sapatos. É o que se vê nesta cena de casamento de escravos de uma família rica (*) no Século XIX. Nela, as personagens não só usam roupas apropriadas para uma ocasião especial como exibem, nos pés, os calçados que sua condição servil habitualmente proibia.
(*) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 3, Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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Debret também retratou uma dessas exceções, em que, aos escravos, permitia-se o uso de sapatos. É o que se vê nesta cena de casamento de escravos de uma família rica (*) no Século XIX. Nela, as personagens não só usam roupas apropriadas para uma ocasião especial como exibem, nos pés, os calçados que sua condição servil habitualmente proibia.
(*) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 3, Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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