terça-feira, 14 de junho de 2011

O vestuário dos escravos no Brasil - Parte 1

Não é tarefa simples detalhar o que vestia a "gente comum" no período colonial, já que, sob muitos aspectos, há uma falta crônica de fontes documentais. Uma vez que a maioria das pessoas não sabia escrever, também não podia deixar anotações, diários e outros papéis que, de outro modo, seriam fontes preciosas de informação. Arquivos ainda existentes são, quase sempre, incompletos e tiveram, por muito tempo, conservação inadequada, o que significa dizer, bem claramente, que em muitos casos os documentos restantes são ilegíveis e, por isso mesmo, virtualmente inaproveitáveis. Em um cenário desses, entende-se que determinar o que vestiam os escravos não é muito fácil.
Temos, no entanto, alguns testemunhos que ajudam a iluminar a questão. Um deles vem de André João Antonil, padre jesuíta que repreende os senhores de engenho que não dão vestuário adequado a seus escravos:
"Se o negar esmola a quem com grave necessidade a pede, é negá-la a Cristo Senhor nosso, como ele diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras galas às que são ocasião da sua perdição, e depois nega quatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de pano da Serra a quem se derrete em suor para o servir, e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer?" (¹)
Desse trecho extraímos algumas informações importantes, como o tipo de tecido de que se fazia a roupa de um escravo que tinha a "boa sorte" de ter um senhor que se preocupava com isso (algodão e pano da Serra, ou seja, tecidos de baixo preço) e a quantidade fornecida (quatro ou cinco varas, lembrando que uma vara corresponde a 1,10 m). Pelo mesmo trecho ficamos sabendo que no cenário colonial havia, eventualmente, outros tecidos disponíveis (seda e serafina, um tipo de tecido de lã estampada), bem mais sofisticados, mas seu destino, como Antonil sugere, era outro.
Acontece que há um outro lado a observar. Se é verdade que, a partir da obra de Antonil podemos deduzir que, pelo menos nos engenhos, havia escravos submetidos a andar maltrapilhos, sabe-se também que a indumentária da população colonial pobre não era, igualmente, das mais favoráveis - desse assunto teremos oportunidade de tratar futuramente, em outra postagem.
O livro de Antonil tem sua edição datada de 1811, no início do século XVIII. Já no século XIX, mais precisamente em 1º de maio de 1822, Saint-Hilaire (naturalista francês que percorreu boa parte do Brasil), anotou ter encontrado um grupo de "escravos novos", ou seja, aqueles recentemente chegados da África, em um rancho de tropeiros, a caminho de uma fazenda onde deveriam trabalhar. Diz ele:
"[...] No rancho ainda permanecia um lote de negros e negras novos que um feitor conduzia a uma fazenda vizinha de Resende.
Todos eles usavam roupa nova e as mulheres tinham para vestir-se uma coberta de pano azul. Trajavam camisa de algodão e saia de cor, os homens punham carapuça de lã vermelha, camisa e calção de algodão grosso. Ontem ao anoitecer estenderam esteiras no chão e deitaram-se uns ao lado dos outros, envoltos em cobertores." (²)
Percebe-se facilmente uma grande diferença entre o que deve ter visto Antonil nos engenhos de açúcar e o que registrou Saint-Hilaire. O que não se se sabe, nesse caso, é quanto tempo se esperava que essas roupas novas durassem. Afinal, Debret, em obra mais ou menos contemporânea, registrou tanto escravos com roupas rasgadas como outros até bem vestidos.  Não que a situação dos escravos houvesse melhorado muito, mas é fato que, gradualmente, alguns senhores começaram a achar constrangedor que seus escravos andassem em trapos. Prover roupas decentes não era, portanto, simplesmente uma questão de humanidade. Era a honra dos escravocratas que estava em jogo.

Mercado de escravos do Valongo, de acordo com Debret (³).
Observe o vestuário dos escravos: a imagem é mais poderosa que quaisquer palavras!

(1) ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, pp. 26 e 27 na edição original de 1711.
(2) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 125.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique ao Brésil Tomo 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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