quinta-feira, 10 de março de 2011

Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial

Dentre as obras que nos oferecem uma visão do Brasil tal qual era nos primeiros séculos a partir da presença portuguesa destaca-se Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Curioso, pragmático, às vezes até divertido, esse livro, identificado em sua edição original de 1711 como sendo da autoria de André João Antonil, foi, muito provavelmente, obra do jesuíta italiano Giovanni Antonio Andreoni, que desde logo percebeu a conveniência de um pseudônimo. Dentre outras singularidades, a obra é dedicada ao projeto de beatificação do Padre José de Anchieta, coisa que somente viria a ser realidade no século XX, mais precisamente em 1980.
Ora, que problema poderia haver em uma obra que se propunha a descrever o Brasil do início do século XVIII? Sim, havia um grande problema, ao menos sob o ponto de vista da Coroa lusitana, já que Antonil (ou Andreoni) pinta um quadro sobremodo vívido do país, detalhando as práticas agrícolas e métodos de cultivo, além da riqueza da mineração, o que poderia chamar a atenção de outras potências cobiçosas da Colônia. O simples fato de que um jesuíta italiano andasse a proclamar tais coisas para quem quisesse ler já era encarado com suspeição. Por isso, a despeito de ter o Autor obtido inicialmente todas as permissões para impressão e circulação, tanto da parte do Santo Ofício quanto do Paço, o livro acabou não apenas proibido, como também procurou-se destruir dele tantos exemplares quanto fosse possível.
Pois bem, leitor, nenhuma censura é para sempre e, com a inevitável sobrevivência de alguns exemplares e posteriores reedições, aqui vamos nós saborear um trechinho da obra, que talvez dê a quem lê a parte o desejo de conhecer o todo. Estando Antonil/Andreoni a tecer considerações quanto aos cuidados que um senhor de engenho deveria ter na aquisição e conservação de suas terras, indica o zelo indispensável que deveria mostrar ao tratar da preservação dos documentos que atestassem a legitimidade da posse. Escreve:
"Nem deixe os papéis e as escrituras que tem na caixa da mulher, ou sobre uma mesa expostas ao pó, ao vento, à traça e ao cupim; para que depois não seja necessário mandar dizer muitas Missas a Santo Antônio para achar algum papel importante que desapareceu, quando houver mister exibi-lo."
Já temos aqui uma coleção de informações sobre os hábitos domésticos nas casas-grandes dos poderosos senhores de engenho do período colonial:
- Era costume guardar papéis na "caixa da mulher", por certo um baú onde os pertences de algum valor podiam ser conservados - se não fosse assim, Antonil/Andreoni não precisaria advertir a que não se procedesse por tal modo;
- Além disso, como parece óbvio, traças e cupins eram comuns o bastante para constituírem uma ameaça real à conservação de documentos (continuam a ser, infelizmente);
- Em terceiro lugar, somos informados de que, na hipótese do sumiço de alguma coisa, o "santo da vez" era Santo Antônio, já sobrecarregado, como se sabe, com suas obrigações casamenteiras.
Mas Antonil/Andreoni não interrompe nesse ponto suas instruções, antes segue explicando as razões para tantos cuidados com a papelada. Veja:
"Porque lhe acontecerá que a criada ou serva tire duas ou três folhas da caixa da senhora para embrulhar com elas o que mais lhe agradar; e o filho mais pequeno tirará também algumas da mesa para pintar caretas, ou para fazer barquinhos de papel em que naveguem moscas e grilos; ou finalmente o vento fará que voem fora da casa sem penas."
Bravo, Andreoni, que nos legou preciosas informações. Primeiro,a caixa da senhora não era lá um lugar tão seguro, se a criada tinha acesso a ela e podia tirar o que bem entendesse; depois, e mais interessante ainda, nos fornece um lampejo das ocupações infantis em tempos tão distantes, ou seja, "pintar caretas ou fazer barquinhos de papel". Sim, como a maioria dos meninos de hoje, mas com um delicioso particular, "barquinhos de papel em que naveguem moscas e grilos". É sempre válido recordar que, nesses tempos, papel era um artigo caro e não muito fácil de ser obtido por quem vivia na Colônia. No fim de tudo, esse "livro proibido" tem o encanto de nos levar para perto de um universo já longínquo cronologicamente além, é claro, de lembrar aos desorganizados de hoje que, como sempre, é necessário ter cuidado na conservação de documentos, para não se ter, depois, que recorrer a Santo Antônio...


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