
Ora, que problema poderia haver em uma obra que se propunha a descrever o Brasil do início do século XVIII? Sim, havia um grande problema, ao menos sob o ponto de vista da Coroa lusitana, já que Antonil (ou Andreoni) pinta um quadro sobremodo vívido do país, detalhando as práticas agrícolas e métodos de cultivo, além da riqueza da mineração, o que poderia chamar a atenção de outras potências cobiçosas da Colônia. O simples fato de que um jesuíta italiano andasse a proclamar tais coisas para quem quisesse ler já era encarado com suspeição. Por isso, a despeito de ter o Autor obtido inicialmente todas as permissões para impressão e circulação, tanto da parte do Santo Ofício quanto do Paço, o livro acabou não apenas proibido, como também procurou-se destruir dele tantos exemplares quanto fosse possível.
Pois bem, leitor, nenhuma censura é para sempre e, com a inevitável sobrevivência de alguns exemplares e posteriores reedições, aqui vamos nós saborear um trechinho da obra, que talvez dê a quem lê a parte o desejo de conhecer o todo. Estando Antonil/Andreoni a tecer considerações quanto aos cuidados que um senhor de engenho deveria ter na aquisição e conservação de suas terras, indica o zelo indispensável que deveria mostrar ao tratar da preservação dos documentos que atestassem a legitimidade da posse. Escreve:
"Nem deixe os papéis e as escrituras que tem na caixa da mulher, ou sobre uma mesa expostas ao pó, ao vento, à traça e ao cupim; para que depois não seja necessário mandar dizer muitas Missas a Santo Antônio para achar algum papel importante que desapareceu, quando houver mister exibi-lo."
Já temos aqui uma coleção de informações sobre os hábitos domésticos nas casas-grandes dos poderosos senhores de engenho do período colonial:
- Era costume guardar papéis na "caixa da mulher", por certo um baú onde os pertences de algum valor podiam ser conservados - se não fosse assim, Antonil/Andreoni não precisaria advertir a que não se procedesse por tal modo;
- Além disso, como parece óbvio, traças e cupins eram comuns o bastante para constituírem uma ameaça real à conservação de documentos (continuam a ser, infelizmente);
- Em terceiro lugar, somos informados de que, na hipótese do sumiço de alguma coisa, o "santo da vez" era Santo Antônio, já sobrecarregado, como se sabe, com suas obrigações casamenteiras.
Mas Antonil/Andreoni não interrompe nesse ponto suas instruções, antes segue explicando as razões para tantos cuidados com a papelada. Veja:
"Porque lhe acontecerá que a criada ou serva tire duas ou três folhas da caixa da senhora para embrulhar com elas o que mais lhe agradar; e o filho mais pequeno tirará também algumas da mesa para pintar caretas, ou para fazer barquinhos de papel em que naveguem moscas e grilos; ou finalmente o vento fará que voem fora da casa sem penas."
Bravo, Andreoni, que nos legou preciosas informações. Primeiro,a caixa da senhora não era lá um lugar tão seguro, se a criada tinha acesso a ela e podia tirar o que bem entendesse; depois, e mais interessante ainda, nos fornece um lampejo das ocupações infantis em tempos tão distantes, ou seja, "pintar caretas ou fazer barquinhos de papel". Sim, como a maioria dos meninos de hoje, mas com um delicioso particular, "barquinhos de papel em que naveguem moscas e grilos". É sempre válido recordar que, nesses tempos, papel era um artigo caro e não muito fácil de ser obtido por quem vivia na Colônia. No fim de tudo, esse "livro proibido" tem o encanto de nos levar para perto de um universo já longínquo cronologicamente além, é claro, de lembrar aos desorganizados de hoje que, como sempre, é necessário ter cuidado na conservação de documentos, para não se ter, depois, que recorrer a Santo Antônio...
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