quinta-feira, 17 de março de 2011

Escravos que resistiam à escravidão - Parte 3

"Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate'.
Queste parole di colore oscuro
vid'io scritte al sommo d'una porta."
Dante Alighieri, La Divina Commedia


O Padre Andreoni (ou Antonil) não era, como já disse em outra postagem, contrário à escravidão. Nem por isso tinha os olhos fechados para as aberrações que se cometiam no tratamento dos cativos que trabalhavam nos engenhos de açúcar. Por essa razão, aconselhou aos senhores de engenho que porventura viessem a ter contato com sua obra (¹):
"E bem é, que saibam que isto lhes há de valer: porque de outra sorte, fugirão por uma vez para algum mocambo no mato; e se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoitá-los, ou que algum seu parente tome à sua conta a vingança, ou com feitiço, ou com veneno."
Valem aqui algumas observações:
1) O medo de uma vingança por parte dos escravos, em particular por envenenamento, era quase uma paranoia entre os membros da camada senhorial (sobre isso, veja minha postagem anterior, Escravos que Resistiam à Escravidão - Parte 2);
2) Antonil publicou seu livro em 1711. Mais tarde, já independente, o Império do Brasil incluiria o envenenamento em seu Código Criminal como agravante em um crime de assassinato ou tentativa de assassinato;
3) Para o africano escravizado, a possibilidade de retornar à África era praticamente nula, daí ser a fuga para o interior e a vida em algum quilombo talvez a única maneira de escapar à brutal exploração de sua força de trabalho;
4) Atentos ao risco que as fugas e a formação de quilombos representavam ao sistema, os senhores eram zelosos em empreender a captura e a punição exemplar dos fugitivos;
Escravos recebendo castigo público, segundo Rugendas (²)
5) Se capturado, um escravo fugitivo muitas vezes preferia morrer a enfrentar a tortura, o que, no final das contas, acabava sendo um dano ao "proprietário", já que o "investimento" feito na compra desse escravo perdia-se completamente - o escravo vingava-se, é verdade, mas ao custo da própria vida. Não creio, no entanto, que a maioria dos escravos que cometia suicídio o fizesse para, deliberadamente, vingar-se do "dono". Era a total desesperança que os levava por esse caminho. Não, leitor, Dante nunca conheceu um engenho de açúcar ou fazenda de café (viveu muito antes disso), mas penso que não teria dúvidas em identificar esses lugares!
As fugas persistiram durante toda a vigência do regime escravista e, em alguns lugares, chegaram a ser mais frequentes à medida que o sistema de trabalho compulsório ruía. O caso é que os suicídios de escravos também continuaram a ocorrer. Concluo mencionando este, ocorrido em Santa Catarina no ano de 1866:
"Em Santa Catarina um preto escravo suicidou-se singularmente. Encheu a boca de pólvora e fê-la incendiar-se. A explosão fez com que ficasse espalhada no pavimento toda a massa cerebral contida no crânio do infeliz." (³)

(1) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães e Comp., p 158.


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