domingo, 27 de março de 2011

Uma planta desobediente às regras da filosofia

Os primeiros europeus que chegaram à América, em fins do século XV e início do XVI, divulgaram dela descrições que estavam mais para um paraíso que para apenas mais um Continente. Árvores gigantescas, animais, flores e frutos exóticos, tudo era relatado até com um certo exagero, contribuindo para a formação de ideias um tanto fantasiosas e irreais, que mesclavam a apoteose da natureza ao horror dos espetáculos de canibalismo indígena.
Ainda que o exagero fizesse parte das narrativas que então se produziram, era inegável que um novo panorama de diversidade biológica se abria aos estudiosos que, no entanto, não estavam assim tão aptos a desvendar os segredos da América, prisioneiros que eram das velhas formas de pensar derivadas do escolasticismo de inspiração aristotélica.
Por suposto os primeiros autores que versaram sobre o Continente recém-descoberto eram todos europeus; mas, à medida que a colonização prosseguia, filhos de europeus nascidos na América passaram a constar entre os autores de obras que se destinavam claramente a maravilhar os leitores do Velho Mundo. Entre esses autores está Frei Vicente do Salvador que, até onde sabemos, foi o primeiro nascido no Brasil a lançar-se na empresa de escrever uma história da então colônia lusitana. Em seu livro, que por séculos permaneceu sem ser impresso, misturam-se descrições da terra que, em parte, ele conhecia bem (era natural da Bahia) à narrativa dos acontecimentos relacionados à ocupação e governo português, verdadeiras aventuras, muitas vezes, no exato sentido do termo. Seu estilo lembra um pouco o de Heródoto, fazendo-se antes um contador de histórias que um historiador com bases científicas, pelo menos quanto ao modo como hoje entendemos essa questão. Assim, leitor, para dar-lhe a oportunidade de saborear um pouquinho dessa História do Brasil, vai aqui um breve trecho descritivo de uma particularidade vegetal da América:
"Outras há de qualidades ocultas, entre as quais é admirável uma ervazinha, a que chamam erva viva, e lhe puderam chamar sensitiva, se o não contradissera a Filosofia, a qual ensina o sensitivo ser diferença genérica, que distingue o animal da planta, e assim define o animal, que é corpo vivente sensitivo.
Mas contra isso vemos, que se tocam a esta erva com a mão, ou com qualquer outra coisa, se encolhe logo e se murcha, como se sentira o toque, e depois que a largam, como já esquecida do agravo que lhe fizeram, se torna a estender e abrir as folhas; deve isto ser alguma qualidade oculta, qual a da pedra de cevar para atrair o ferro, e não lhe sabemos outra virtude."

Dormideira ou sensitiva (Mimosa pudica) com as folhas abertas

A mesma planta, após ser tocada, com as folhas fechadas
Sim, leitor, está permitido abrir um sorriso... Frei Vicente do Salvador era homem instruído, educado na Universidade de Coimbra, mas incorre aqui na ingenuidade de tentar encaixar todo o novo conhecimento nos velhos modelos herdados da filosofia medieval. Além disso, parece quase admitir a ideia de que pudesse haver alguma propriedade mágica, ainda desconhecida, na plantinha, que compara aos ímãs. Obviamente nada disso diminui o interesse por sua História do Brasil - para mim, só aumenta, na medida em que é um retrato fiel do pensamento da época - mesmo porque ele não era o único a ir por esse caminho, pelo qual passavam a maioria dos intelectuais do período (considera-se que o manuscrito foi concluído por volta de 1627).
Para encerrar a postagem, quero apenas assinalar que, como todo mundo sabe e, malgrado a oposição de Frei Vicente do Salvador, o nome popular dessa plantinha rasteira é mesmo sensitiva ou dormideira, ainda que a nomenclatura binomial a chame Mimosa pudica.


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