quinta-feira, 24 de março de 2011

Surfando (literariamente) no rio Piracicaba

Muito do que se escreveu, em termos de Literatura propriamente dita, no Brasil do século XIX, ambienta-se na Corte, ou seja, no Rio de Janeiro, que era a Capital do país naquela época. Poucas são as obras que têm as capitais das Províncias (os atuais Estados) como cenário, e menos ainda as que retratam, de algum modo, a vida no interior do Brasil. Dentre essas últimas, encontra-se Til, de José de Alencar.
Til, obra publicada em 1871, desenrola-se no ambiente rural das fazendas de cana-de-açúcar nos arredores de Santa Bárbara e Piracicaba, no interior de São Paulo, em meados do século XIX. Fica evidente ao leitor atento que Alencar não conhecia pessoalmente a região - chega, para dar uma "ancoragem histórico-geográfica", a citar, em rodapé, a Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal (que fora publicada em 1817). A despeito disso, a obra, que procura transcrever com fidelidade o falar típico da área, intercalando trechos descritivos em meio ao correr da narração, não chega a ter grandes disparidades em relação à realidade, exceto por questões que qualquer um que conheça o lugar pode facilmente observar. Mas vamos em frente, que não é a análise literária o objetivo desta postagem, nem pretendo tirar ao leitor que queira percorrer o romance todo a diversão de descobri-lo por si mesmo.
Já na última parte da obra, encontramos um episódio que transcorre durante uma festa popular em Piracicaba. Deixemos que Alencar mesmo nos conte:
"A cidade da Constituição, outrora vila da Piracicaba, assenta nas rampas de uma colina que se eleva à margem do rio.
[...]
Era domingo: e havia na vila rebuliço de festa.
Pelas ruas, de ordinário soturnas e ermas, passavam ranchos de gente a pé e grupos de cavaleiros que acudiam à função. Às vezes era algum carro de bois, coberto com esteiras e atopetado de moças, crias e mucamas, que atroava os ares com o chio estridente.
Pouco mais de nove horas havia de ser.
Uma canoa acabava de abicar à ribeira junto à ponte, e dela saltavam Nhá Tudinha, Berta e Miguel, que também vinham atraídos pela festa.
O rancho subiu a ladeira que vai ter ao largo da matriz. Miguel, triste e abatido, investigava com um olhar de desânimo as janelas das casas. Berta a furto observava-o com uma expressão de terno ressentimento."
De onde vinham Nhá Tudinha, Berta e Miguel? O romance tem a resposta, dessa vez na  segunda parte, ao descrever sua morada:
"Na entrada do vale, onde assenta a freguesia de Santa Bárbara, via-se outrora à margem do Piracicaba, escontra o rio, um velho casebre.
Era uma antiga construção de taipa; e mostrava com pouca diferença o aspecto comum às habitações medianas que, naquela parte da Província de São Paulo, se encontram de espaço em espaço pela beira do caminho, e à distância dos arraiais e povoados."
Agora, leitor, raciocine comigo: Nhá Tudinha, Berta e Miguel moravam próximo a Santa Bárbara e, segundo Alencar, vieram à festa usando uma canoa, que desceu o rio Piracicaba. Chegam à cidade, sobem a ladeira (a atual rua Moraes Barros) e vão sair na Praça da Matriz (Praça José Bonifácio), onde hoje está a Catedral de Santo Antônio. Parece tudo correto, e talvez Alencar tenha até consultado algum mapa, eventualmente disponível, para entremear adequadamente narração e descrição. Mas há um problema - não se pode fazer o trajeto, como descrito, de canoa. Por quê? Ora, porque seguindo o rio entre Santa Bárbara e o ponto referido da antiga Vila da Constituição está o Salto do Piracicaba, conhecido como "véu da noiva", que é absolutamente intransponível de canoa, a menos que o tripulante seja doido de pedra! Portanto, não se pode imaginar uma senhora e dois jovens comportados tentando tamanha insanidade. Se tem alguma dúvida, olhe as fotografias e julgue por si mesmo...
Resta ainda mais uma observação. Como já mencionei, José de Alencar cita, em uma nota, o Pe. Ayres de Casal, isso no início de Til. Pois deveria ter ficado atento ao que esse mesmo autor refere na Corografia Brasílica:
"Com o seu termo, ao Poente, confina o da nova Freguesia de Percicaba [sic], cuja Matriz está em uma amena planura, em que termina uma colina sobre a margem meridional do rio que lhe dá o nome; e junto a uma vistosa cascata de muitos degraus, que ele ali forma, onde finda a navegação."
Note bem, onde finda a navegação. Na prática, o Piracicaba é navegável antes do salto e depois dele. A propósito, ao que sabemos, Aires de Casal também nunca esteve em Piracicaba, e baseou a maior parte de sua obra em relatos que ouviu, antigos manuscritos e mapas, nem sempre precisos, que consultou.

Casa do Povoador, margem esquerda do Rio Piracicaba, logo abaixo do "véu da noiva".


Veja também:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.