O título é gigantesco, Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, Para se Recuperar a Cidade do Salvador, na Bahia de Todos os Santos, Tomada Pelos Holandeses, a Oito de Maio de 1624 e Recuperada ao Primeiro de Maio de 1625, mas não explica tudo - para se entender, de fato, essa obra, é preciso lê-la com cuidado, o que é incomum, já que linguagem e forma não se enquadram, pelos padrões de hoje, no que se classificaria como leitura agradável. Constitui-se, no entanto, em texto bastante revelador, não simplesmente sobre a guerra a que o título se refere, mas sobre os valores e costumes da época.
O autor se identifica como "Padre Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus", tendo a obra sido impressa em Lisboa, por Mattheus Pinheiro, no ano de 1625. É, por isso, um testemunho absolutamente contemporâneo aos acontecimentos que relata. Cabe agora explicar seu contexto mais amplo, que não se prende apenas ao confronto na Bahia.
Desde 1580 estava Portugal agregado ao controle do monarca espanhol, o que significa que um só rei respondia pelas duas Coroas. Por suposto, à exceção dos que tinham razões pessoais para apoiá-la, a União Ibérica soava muito antipática aos portugueses. Entretanto, seguindo a linha de pensamento corrente, alardeava-se sempre uma submissão ao rei que, pela "vontade de Deus", exercia o mando (nesse momento, Sua Majestade atendia pelo nome de Filipe IV). Isso explica, de saída, o tom algo bajulatório da obra. Mas é também devido à União Ibérica que a armada que se enviou ao Brasil foi constituída por forças de Portugal, além das de Espanha e Nápoles, inegavelmente contribuindo para reforçar o potencial ofensivo da expedição.
Voltemos ao livro. Nele, destacam-se os feitos da nobreza lusa, sem dar quase nenhuma importância a eventuais proezas de soldados e marinheiros "comuns", o que não chega a ser grande surpresa, face aos costumes daqueles dias. Entretanto, por trás de um texto aparentemente tão bem comportado, transparece a verdade que não se quer explicitar, e que vai além da exaltação de feitos militares. O que veremos a seguir são dois tópicos que exemplificam essa questão.
Primeiro, acaba-se explicando o real motivo (nos dois sentidos) do envio de forças que auxiliassem a retomada do controle português na Bahia:
"Porque fazendo-se guerra ao inimigo, de sorte que estivesse fechado na cidade que tomara, e se não estendesse ao recôncavo da Bahia, porque nisso podiam perigar as grossas fazendas dos engenhos de açúcar, de que tantos proveitos recebem as alfândegas de Sua Majestade, importava favorecer os que no campo acompanhavam aos capitães, ou eleitos pela Câmara da Bahia..." (¹)
Segundo, para surpresa dos leitores de hoje e nenhuma dos antigos, o autor diz que, diante na notícia da tomada de Salvador por holandeses, Filipe IV ordenou imediatas providências... religiosas, mandando castigar os pecados públicos, conforme se vê em palavras do próprio monarca:
"Tendo consideração ao muito que Deus nosso Senhor se ofende de que haja descuidos no castigo dos pecados públicos e escandalosos, e quão necessário é tratar-se mui de propósito de ter mão no rigor da divina justiça, para que levante os castigos e disponha para maior seu serviço, bem comum da Igreja Católica e de meus reinos e vassalos o fim de meus intentos e particularmente esta empresa do socorro do Brasil, me pareceu encomendarmos muito que com toda a aplicação e cuidado devido vos informeis dos pecados públicos, e averiguando-se, se proceda com os culpados na mesma conformidade, advertindo que com vo-lo ordenar assim, descarrego a obrigação de minha consciência, e espero que cumprireis com a vossa, de maneira que se dê inteira satisfação à justiça com exemplo e emenda." (²)
Ou seja, o raciocínio de Sua Majestade poderia ser mais ou menos este: "Muito bem, temos problemas. Os holandeses, meus inimigos, invadiram o Brasil. Isso deve ser castigo de Deus. Portanto, antes de enviar tropas, temos que fazer a Inquisição agir". Que pensar de tudo isso?
Autores de renome já têm demonstrado que a monarquia de Castela (e não apenas ela) serviu-se fartamente da Inquisição para fins políticos, com o objetivo de manter, sob terror, um maior controle da população, e é bem provável que o rei tenha, sob esse aspecto, recebido conselhos dos religiosos que pululavam na Corte; entretanto, vale lembrar que, no século XVII, a noção de Estado laico, de absoluta separação entre Estado e Igreja, era um fenômeno ainda praticamente desconhecido. Segue-se que a lógica adotada era muito diferente da que se espera na atualidade. Afinal, como supor laicidade no contexto de uma monarquia de direito divino, se até agora há que tenha sérias dificuldades em separar as questões de Estado daquelas que interessam ao âmbito religioso? Que se vejam alguns "episódios" bem recentes na Conferência de Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20!
Embora anteriormente já tivesse seus defensores, foi somente no século XIX que o conceito de que os cidadãos podiam ter suas concepções religiosas mas que o Estado devia ser laico começou a lançar raízes no mundo ocidental, no rastro da afirmação de uma série de outras novidades ligadas ao exercício de direitos individuais. Fica, pois, entendido, que a política de Filipe IV, conquanto nos pareça aberrante, era de uma perfeita coerência em relação ao que se entendia por governo na Corte espanhola de seus dias. Estranho seria se fizesse qualquer outra coisa.
(1) Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal. Lisboa: Mattheus Pinheiro, 1625, p. 12.
(2) Ibid., p. 9.
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