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domingo, 14 de abril de 2013

Simonia

"Que haja certas mercancias
não de coisas temporais
mas de outras espirituais,
que se chamam simonias:
que haja quem todos os dias
com modo tão peregrino
seja ladrão ao divino
com tão falsa narratória!
Boa história."

Gregório de Matos, A Musa Praguejadora


Em uma definição bem simples, simonia é o comércio de bens espirituais. Tal assunto já motivou querelas terríveis, há alguns séculos, e ultimamente tem andado na moda, outra vez. Aos que são cristãos, parece um absurdo que alguém, com dinheiro, imagine poder comprar coisas como  um lugar no céu, um tempo menos longo no purgatório, ou mesmo o consolo de um sacramento na hora da morte. No entanto, para lástima da humanidade, tem havido muita gente supostamente querendo vender os "bens espirituais", como há, quase sempre, quem esteja disposto a efetuar tal compra.
Saint-Hilaire encontrou dois desses "comerciantes" quando andou, no século XIX, pelo Rio Grande do Sul e território do atual Uruguai, e não economizou palavras para recriminá-los.
Em um tempo no qual simplesmente não havia hotéis pelo Brasil, Saint-Hilaire dependia, ao longo de suas viagens com o fim de estudar principalmente a flora do Brasil, de encontrar hospedagem em casas de particulares. É aí que entra a história do Padre Alexandre, que peremptoriamente recusou abrigo ao viajante:
"Convém salientar que os dois únicos homens que me recusaram hospitalidade durante minhas longas viagens foram um materialista e um padre, mas com a diferença de que fui bem recebido pelo materialista, quando este soube quem eu era, enquanto o padre se manteve irredutível. A reprovação que acabo de fazer não deve causar surpresa; um mau sacerdote é o pior de todos os ímpios, pois faz do sacrilégio um hábito cotidiano. Seria talvez injusto julgar o Padre Alexandre por apenas um ato, mas eu já sabia, pelo alferes, que esse homem fazia o tráfico dos sacramentos e que, tendo a permissão de batizar em sua fazenda, não o fazia por menos de oito mil-réis; entretanto foi cura de São Borja por muito tempo [...]." (¹)
Com isso, lá se foi o muito religioso Saint-Hilaire, amargando seu desgosto com o padre, ainda mais uma légua adiante, até uma estância onde, dessa vez, foi muito bem recebido.
Ainda na mesma viagem, encontraria outro caso de simonia, dessa vez absolutamente explícito:
"A Capela de Santa Maria depende, como disse, da Paróquia de Cachoeira, cujo vigário recebe de cada fiel meia pataca em confissão pascal. Os habitantes de Santa Maria se cotizam, estabelecendo um donativo ao seu capelão. Este recebeu do cura para ouvir confissões e seus penitentes lhe pagam meia pataca que ele envia ao cura. Seria de toda justiça que, em relação ao dinheiro, o cura pagasse ao capelão, como se faz em Minas; mas para ele, essa parte da paróquia é uma espécie de sinecura que ele recebe sem encargos, e seu tratamento com o capelão se reduz a isto: "Eu lhe permito exercer as funções de cura no Distrito de Santa Maria e de receber salários de meus paroquianos, mas com a condição de reservar o produto da venda das confissões pascais." Acho que é impossível levar mais longe a simonia." (²)
 
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Tenho já abordado neste blog, algumas vezes, o fato de que, pela extensão territorial do Brasil e pelas dificuldades de comunicações, era muito difícil assegurar o cumprimento das leis e a administração da justiça. Esses casos de simonia, relacionados mais à Igreja que à autoridade civil (embora, nesse tempo, não existisse no Brasil nada que se pudesse chamar de "Estado laico"), inscrevem-se no mesmo contexto. Era quase impraticável às autoridades eclesiásticas o exercício de uma fiscalização eficiente do que ocorria em paróquias muito distantes umas das outras, isso quando havia párocos para atender à população (embora todo mundo, para que houvesse assistência religiosa, pagasse os dízimos ao governo português), sendo perfeitamente possível que a alguns colonizadores transcorresse a vida toda sem que, nas localidades remotas em que se estabeleciam, vissem aparecer um único clérigo. Por outro lado, quase não têm conta os relatos de padres que gastavam seus dias caçando índios no sertão ou de monges que abandonavam suas Ordens para ir procurar ouro nas minas.
Tem-se, pois, que tais fatos são um bom termômetro do modo muitas vezes desordenado pelo qual se deu a colonização. Meus leitores sabem perfeitamente quais foram (e são...) as consequências disso.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 319 e 320.
(2) Ibid., p. 405.


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domingo, 24 de junho de 2012

Como e por que a monarquia espanhola quis recuperar a Bahia, ocupada por holandeses em 1624

O título é gigantesco, Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, Para se Recuperar a Cidade do Salvador, na Bahia de Todos os Santos, Tomada Pelos Holandeses, a Oito de Maio de 1624 e Recuperada ao Primeiro de Maio de 1625, mas não explica tudo - para se entender, de fato, essa obra, é preciso lê-la com cuidado, o que é incomum, já que linguagem e forma não se enquadram, pelos padrões de hoje, no que se classificaria como leitura agradável. Constitui-se, no entanto, em texto bastante revelador, não simplesmente sobre a guerra a que o título se refere, mas sobre os valores e costumes da época.
O autor se identifica como "Padre Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus", tendo a obra sido impressa em Lisboa, por Mattheus Pinheiro, no ano de 1625. É, por isso, um testemunho absolutamente contemporâneo aos acontecimentos que relata. Cabe agora explicar seu contexto mais amplo, que não se prende apenas ao confronto na Bahia.
Desde 1580 estava Portugal agregado ao controle do monarca espanhol, o que significa que um só rei respondia pelas duas Coroas. Por suposto, à exceção dos que tinham razões pessoais para apoiá-la, a União Ibérica soava muito antipática aos portugueses. Entretanto, seguindo a linha de pensamento corrente, alardeava-se sempre uma submissão ao rei que, pela "vontade de Deus", exercia o mando (nesse momento, Sua Majestade atendia pelo nome de Filipe IV). Isso explica, de saída, o tom algo bajulatório da obra. Mas é também devido à União Ibérica que a armada que se enviou ao Brasil foi constituída por forças de Portugal, além das de Espanha e Nápoles, inegavelmente contribuindo para reforçar o potencial ofensivo da expedição.
Voltemos ao livro. Nele, destacam-se os feitos da nobreza lusa, sem dar quase nenhuma importância a eventuais proezas de soldados e marinheiros "comuns", o que não chega a ser grande surpresa, face aos costumes daqueles dias. Entretanto, por trás de um texto aparentemente tão bem comportado,  transparece a verdade que não se quer explicitar, e que vai além da exaltação de feitos militares. O que veremos a seguir são dois tópicos que exemplificam essa questão.
Primeiro, acaba-se explicando o real motivo (nos dois sentidos) do envio de forças que auxiliassem a retomada do controle português na Bahia:
"Porque fazendo-se guerra ao inimigo, de sorte que estivesse fechado na cidade que tomara, e se não estendesse ao recôncavo da Bahia, porque nisso podiam perigar as grossas fazendas dos engenhos de açúcar, de que tantos proveitos recebem as alfândegas de Sua Majestade, importava favorecer os que no campo acompanhavam aos capitães, ou eleitos pela Câmara da Bahia..." (¹)
Segundo, para surpresa dos leitores de hoje e nenhuma dos antigos, o autor diz que, diante na notícia da tomada de Salvador por holandeses, Filipe IV ordenou imediatas providências... religiosas, mandando castigar os pecados públicos, conforme se vê em palavras do próprio monarca:
"Tendo consideração ao muito que Deus nosso Senhor se ofende de que haja descuidos no castigo dos pecados públicos e escandalosos, e quão necessário é tratar-se mui de propósito de ter mão no rigor da divina justiça, para que levante os castigos e disponha para maior seu serviço, bem comum da Igreja Católica e de meus reinos e vassalos o fim de meus intentos e particularmente esta empresa do socorro do Brasil, me pareceu encomendarmos muito que com toda a aplicação e cuidado devido vos informeis dos pecados públicos, e averiguando-se, se proceda com os culpados na mesma conformidade, advertindo que com vo-lo ordenar assim, descarrego a obrigação de minha consciência, e espero que cumprireis com a vossa, de maneira que se dê inteira satisfação à justiça com exemplo e emenda." (²)
Ou seja, o raciocínio de Sua Majestade poderia ser mais ou menos este: "Muito bem, temos problemas. Os holandeses, meus inimigos, invadiram o Brasil. Isso deve ser castigo de Deus. Portanto, antes de enviar tropas, temos que fazer a Inquisição agir". Que pensar de tudo isso?
Autores de renome já têm demonstrado que a monarquia de Castela (e não apenas ela) serviu-se fartamente da Inquisição para fins políticos, com o objetivo de manter, sob terror, um maior controle da população, e é bem provável que o rei tenha, sob esse aspecto, recebido conselhos dos religiosos que pululavam na Corte; entretanto, vale lembrar que, no século XVII, a noção de Estado laico, de absoluta separação entre Estado e Igreja, era um fenômeno ainda praticamente desconhecido. Segue-se que a lógica adotada era muito diferente da que se espera na atualidade. Afinal, como supor laicidade no contexto de uma monarquia de direito divino, se até agora há que tenha sérias dificuldades em separar as questões de Estado daquelas que interessam ao âmbito religioso? Que se vejam alguns "episódios" bem recentes na Conferência de Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20!
Embora anteriormente já tivesse seus defensores, foi somente no século XIX que o conceito de que os cidadãos podiam ter suas concepções religiosas mas que o Estado devia ser laico começou a lançar raízes no mundo ocidental, no rastro da afirmação de uma série de outras novidades ligadas ao exercício de direitos individuais. Fica, pois, entendido, que a política de Filipe IV, conquanto nos pareça aberrante, era de uma perfeita coerência em relação ao que se entendia por governo na Corte espanhola de seus dias. Estranho seria se fizesse qualquer outra coisa.

(1) Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal. Lisboa: Mattheus Pinheiro, 1625, p. 12.
(2) Ibid., p. 9.


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