terça-feira, 11 de maio de 2021

Uma cama emprestada para o ouvidor-geral

Em 1620 a vila de São Paulo era, ainda, uma povoação pobre, e seus moradores tinham um estilo de vida rústico. O mobiliário das casas, por exemplo, feito quase todo na própria localidade, não era exatamente o que se poderia definir como um luxo. A maioria da população dormia em redes ou em camas toscas. Exceção à regra era Gonçalo Pires, que, sabe-se lá como, era proprietário de uma cama de verdade, vinda do Reino. Imagine-se o que deve ter sido o transporte desse móvel serra acima, desde o porto de Santos até São Paulo, pelo escabroso Caminho do Mar... O desconforto do transporte pagava-se bem, no entanto, e Gonçalo Pires estava feliz. Pior para ele.
Eis que um dia chega à vila a notícia de que o ouvidor-geral viria visitá-la. Como acomodar tão ilustre figura? As leis portuguesas (¹) determinavam que, para que um funcionário público fosse dignamente hospedado, era permitido "emprestar" compulsoriamente a casa ou os móveis de algum morador, que devia, no entanto, ser devidamente ressarcido se, por causa disso, seu patrimônio sofresse algum dano. Já adivinharam, não é, meus leitores? Os oficiais da Câmara logo se lembraram de que havia pelo menos uma cama decente na vila e mandaram buscá-la. Longe de interpretar a requisição como uma honra, o proprietário da cama ficou furioso. 
O ouvidor veio e se foi. Cabia à Câmara, agora, devolver a cama ao dono e, para isso, chamou quem julgasse se o móvel e a roupa emprestados estavam em boas condições: 
"Aos doze dias do mês de setembro de mil e seiscentos e vinte anos se ajuntaram em Câmara os oficiais do dito ano [...] e assim mais mandaram os oficiais da Câmara vir uma cama, colchão e cobertor e um lençol de pano de algodão usado e um travesseiro usado que foi tomado a Gonçalo Pires por mandado dos oficiais da Câmara para o ouvidor-geral, o qual estava da maneira que o tomaram de sua casa [...], que estava da própria maneira que acharam [...], somente estar o lençol por lavar [...]."
Esse documento mostra que:
  • Sendo necessário emprestar até lençóis, travesseiro e cobertor, a vila era, de fato, muito pobre;
  • O empréstimo de modo algum fora voluntário, porque não se nega que os objetos foram tomados a Gonçalo Pires, à força, talvez até com violência.
A ata prossegue, referindo  como seria pago o aluguel da cama:
"[...] e logo na mesma Câmara acordaram os oficiais, juiz e vereadores e procurador [...] que fosse notificado com pena de seis mil réis que logo Gonçalo Pires se venha entregar e receba o dinheiro que Sua Majestade manda de aluguel de sua cama, e não querendo ele, dito Gonçalo Pires, protestavam de não incorrerem em coisa alguma e me mandaram a mim, escrivão, que o notificasse [...]."
Mais observações:
  • A imposição de multa para que o dono da cama viesse receber o dinheiro do aluguel prova que não queria fazê-lo, e certamente não era por generosidade;
  • Que estaria armando Gonçalo Pires, para que a ata falasse em mandar que "se venha entregar"?
  • Sabiam os oficiais que, no cumprimento da lei, deviam pagar o aluguel correspondente, mas já sabendo, também, que Gonçalo Pires provavelmente não viria recebê-lo, protestaram inocência no caso. 
Quase dois meses mais tarde, em outra ata, registrou-se:
"Ao derradeiro de outubro de mil e seiscentos e vinte anos se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] e logo na dita Câmara apareceu o alcaide Francisco Preto, desta vila, e deu por fé que indo à casa de Gonçalo Pires a fazer uma notificação por mandado dos ditos oficiais em como lhe mandavam ao dito Gonçalo Pires viesse tomar entrega de uma cama que nesta casa do Concelho (²) está, a qual cama foi tomada para o serviço do ouvidor-geral Amâncio Rabelo Coelho [...], o dito Gonçalo Pires se lhe escondera, o que fazia a fim de se lhe não fazer a dita notificação e por se não entregar da dita cama, fundado em sua malícia e interesse [sic!!!], ao que mandaram os ditos oficiais lhe fosse feita a terceira notificação, e quando o não acharem notificarão a um vizinho seu  mais chegado [...]."
Teimoso? Orgulhoso demais? Talvez seu exagerado senso de honra pessoal estivesse um pouco fora de tempo e lugar. Nos dias do absolutismo, os reis, os nobres e o alto funcionalismo público tinham direitos que gente comum, como devia ser nosso Gonçalo Pires, não podia contestar, por mais irritantes e descabidos que parecessem tais privilégios. Não basta ser lei para que seja justo, mas isto achamos nós, sob o abrigo do conceito ocidental de democracia, no qual vivemos. O pecado de Gonçalo Pires foi ter vivido no Século XVII - estão de acordo, leitores?

(1) Ordenações do Reino, Livro I, Título VII, § 36.
(2) Unidade municipal portuguesa.


Veja também:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.