Fundada no Século XVI (¹), a cidade do Rio de Janeiro tornou-se capital do Brasil, em substituição a Salvador, no Século XVIII (²). Os novos tempos, nos quais era preciso zelar pelas remessas de ouro e diamantes para o Reino, explicam a mudança. Desvanecia-se o primado do açúcar diante do brilho de minerais tão cobiçados.
Antes e depois de se tornar capital, o Rio de Janeiro, como muitas outras cidades coloniais, não era exatamente um monumento à higiene. De acordo com José Vieira Fazenda, no começo do Século XVII a Câmara do Rio de Janeiro decidiu impor uma multa aos armadores de baleias que insistissem em carneá-las perto da barra, em razão, é claro, do odor extremamente desagradável exalado. Não se deve imaginar, portanto, que apenas as ruas eram sujas - a mesma coisa poderia ser dita em relação à orla marítima. Também segundo Vieira Fazenda, Bernardino Antônio Gomes, um médico ouvido pela Câmara em 1798, afirmou: "[...] "quase toda a praia desta cidade da banda da baía é por falta de cais extremamente imunda [...]; as ruas da Vala e Cano (³) são ingratas aos passageiros pelo vapor que exalam [...]"." (⁴)
Lembrando aos leitores que, em razão das ameaças constantes de invasões, o Rio de Janeiro colonial tinha muralhas para proteção, deve-se dizer, também, que era perto delas, em alguns pontos, que o lixo da cidade era lançado. Esqueçam, por favor, qualquer serviço de limpeza urbana nesse tempo, mas considerem, ainda por informação de José Vieira Fazenda, que tanto entulho de péssimo aroma oferecia, em adição, um problema estratégico: "Isso se dava perto da muralha, onde tal era a altura de imundícies, que haviam quase inutilizado a fortificação [...]." (⁵)
Como mudança de governo não significa, necessariamente, mudança nos costumes em relação à higiene dos lugares públicos, quem esteve no Brasil pela época da Independência ou pouco depois dela, constatou ruas tão sujas como... Como sempre. Saint-Hilaire, por exemplo, fez esta observação, ao comparar Rio de Janeiro e Porto Alegre: "Fácil perceber-se, desde o primeiro instante, que Porto Alegre é uma cidade nova; todas as casas são novas, e muitas ainda em construção; mas, depois do Rio de Janeiro, não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a capital não o seja tanto" (⁶). Complementando essa constatação pouco elogiosa, tem-se o que escreveu C. Schlichthorst, oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros do Império: "A imundície de tão grande cidade [Rio de Janeiro] com outro clima empestaria as ruas, pois cavalos e cães ficam onde caíram mortos, as cloacas despejam-se nas praias e praças públicas, e os mortos são sepultados nas igrejas" (⁷).
Já vamos acabar, leitores. Para que ninguém suponha que o correr dos anos do Império trouxe mudanças radicais, veremos o que escreveram Elizabeth Cary Agassiz e Jean Louis Agassiz, que visitaram o Rio de Janeiro na década de sessenta do Século XIX: "Observando-se o asseio escrupuloso que reina em todos os estabelecimentos públicos do Rio de Janeiro, estranha-se como é que as ruas dessa cidade são as mais imundas que vimos até hoje. É evidente, não há dúvida, que os brasileiros reconhecem a importância da boa conservação de todos os lugares públicos, e é singular que tolerem nas ruas de sua capital um estado de coisas tal que muitas vezes não se sabe onde colocar os pés." (⁸) Em defesa do Rio de Janeiro poder-se-ia dizer que sujeira nas vias públicas não era característica sua, exclusivamente. As ruas, mundo afora, não eram, em geral, muito diferentes.
Como explicar tudo isso? Para os Agassiz, a culpa, em última instância, não era nem do governo, nem do descuido dos moradores: "Ruas estreitas infalivelmente cortadas, no centro, por uma vala onde se acumulam imundícies de todo gênero; esgotos de nenhuma espécie, um aspecto de descalabro geral, resultante, em parte, sem dúvida, da extrema umidade do clima [...]" (⁹). Para esses autores, as ruas eram imundas por causa da umidade, os habitantes de Minas Gerais eram inteligentes devido ao clima, e assim por diante. O determinismo geográfico (em decorrência das condições ambientais) era moda, e servia, em não poucos casos, de muleta para explicar e/ou justificar tanto problemas terríveis quanto coisas que podiam ser reputadas como altamente positivas. Não foi sem causa que essa forma de enxergar a realidade veio a sofrer muitas críticas.
(1) 1565.
(2) 1763.
(3) Esses nomes para ruas são, a propósito, bastante sugestivos.
(4) Cf. FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 438.
(5) Ibid., p. 169.
(6) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 50.
(7) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 28.
(8) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 434.
(9) Ibid., p. 67.
Veja também:
Olá, Marta. Sim, uma tristeza quando a gente pensa nisso, nas doenças, na contaminação, na imundície e nos escravos. O que mais me impressiona é ver que até hoje, século XX!, ainda vemos não só a segregação e o racismo, mas também pessoas jogando lixo nas ruas, nas praças, nos bueiros - copos, sacos plásticos, latas de refrigerante, isso sem falar de artigos maiores, como sofás, por exemplo. Os resultados são conhecidos - entupimento de bueiros, enchentes, doenças etc. Até quando, hein? Quando será que vamos aprender, como sociedade, a cuidar do nosso ambiente? Afinal, a cidade é nossa casa maior, não é mesmo? Grande abraço. Anita
ResponderExcluirBoa noite, Anita, como está?
ExcluirInfelizmente os problemas, na essência, permanecem. Não vejo solução imediata, já que legislação severa parece não ser suficiente para impor descarte correto e reciclagem de lixo.
Parece-me que era um tempo em que, como em qualquer outro lugar, as pessoas preocupavam-se, essencialmente, com o que se passava dentro de portas. Para lá dessa fronteira era uma espécie de terra de ninguém, com a autoridade pública a carecer de visão e vontade, num dolce fare niente que não era bom para ninguém. Mas falava-se, falava-se muito, como que a querer sacudir algo do capote.
ResponderExcluirUm abraço, Marta :)
A aceitação de normas de higiene demorou a ganhar terreno (veja, por exemplo, o caso dos sepultamentos no interior de igrejas, de que já falei aqui no blog). Pode-se resumir a coisa como uma longa batalha entre ciência e tradição, que ainda está longe de acabar.
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