Foi no ano de 1867. Estava em curso a chamada Guerra do Paraguai (¹). Tropas brasileiras que retornavam de Corumbá para Cuiabá, a capital da Província de Mato Grosso, trouxeram consigo a terrível varíola. No dizer de João Severiano da Fonseca, médico veterano da Guerra do Paraguai, "a varíola foi desconhecida ou pelo menos nunca se propagou na Província [de Mato Grosso] até o ano de1867 [...]; mas, naquele ano, desenvolvendo-se essa enfermidade em Corumbá, de pronto estendeu-se a Cuiabá e aos outros povoados, exceção feita, dizem, de S. Luís de Cáceres, onde se estabelecera um rigoroso cordão sanitário" (²).
De acordo com Joaquim Ferreira Moutinho, português que residiu por dezoito anos em Cuiabá e foi testemunha ocular desses acontecimentos, em 1º de julho foi hospitalizado um soldado que, em seguida, morreu, e "todas as pessoas que se comunicaram com os recém-chegados caíram logo com a mesma moléstia, e o número foi gradualmente crescendo [...]" (³). A doença espalhou-se rapidamente entre os moradores de Cuiabá, que, em sua maioria, não eram vacinados. Por que não, se a vacinação era praticada há muito tempo no Brasil? Pode-se facilmente imaginar o argumento: "Bem, nunca tivemos varíola por aqui; por que deveríamos estar preocupados com vacinação?"
A consequência dessa "lógica" foi absolutamente desastrosa. "A cidade tomou um aspecto indescritível", conforme expressão de Ferreira Moutinho, e "de todas as casas via-se saírem cadáveres, que eram conduzidos em redes para os campos, e de muitas fecharam-se as portas, porque os seus habitantes haviam perecido, desde o chefe da família até o último escravo!" (⁴). Nas palavras do mesmo autor, "[...] de uma população de doze mil almas, mais da metade sucumbiu, e parte levantou-se disforme" (⁵).
Os poucos vacinados que lá estavam mal podiam prestar algum socorro para conforto dos doentes. Não havia recursos médicos realmente efetivos contra a enfermidade. No entanto, parece que o comandante das armas de Cuiabá teve uma ideia brilhante. Vejam, leitores, o que contou Joaquim Ferreira Moutinho, mas leiam com atenção, porque é notável:
"O comandante das armas, nos dias mais lutuosos, mandou colocar peças de artilharia em diversas ruas da cidade, e dar fogo de manhã e à tarde.
Ignoramos também o fim dessa medida.
Pretenderia afugentar a epidemia com tiros de canhão? Esse pretendido recurso higiênico foi a causa de tornar-se mais grave o estado de muitos enfermos, pois ao primeiro estampido levantavam-se em delírio e procuravam fugir, julgando que eram os paraguaios que se achavam na cidade." (⁶)
Moutinho não soube explicar para que serviam os tiros de canhão. Também desconheço seu propósito terapêutico. Alguém saberia dizer?
(1) 1864 - 1870.
(2) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878 Volume 1. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1880, p. 186.
(3) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia Sobre a Província de Mato Grosso. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, p. 100.
(4) Ibid., p. 102.
(5) Ibid., p. 104.
(6) Ibid., pp. 105 e 106.
Veja também:
Eu ri!
ResponderExcluirMarta, sei que há um ditado que afirma que, para um martelo, tudo o que existe no mundo se resume a pregos, alegando um determinismo de coisas (obviamente ignorando as criatividades de uso) que se estenderia para justificar atitudes humanas incompreensíveis, como esta.
Com a presidência (p minúsculo) ocupada por beligerantes 24/7, seria ilusão demais esperar que termos como "guerra ao vírus" e "maricas" fosse substituído por "cuidados com os enfermos"? E 2021 é o novo 1867?
Seus temas e seus textos são ótimos! Beijoca.
Boa noite, Clara C! Você é muito bem-vinda a este blog.
Excluir1867 foi um ano atípico, e possivelmente ainda falarei dele aqui no blog. Como sabe, era o tempo da chamada Guerra do Paraguai, e até o clima tornou as coisas difíceis. Diz-se que no centro-oeste não chove nos meses que não têm "r". Pois bem, choveu torrencialmente em maio e junho, tornando detestável a situação das tropas brasileiras que estavam na Província de Mato Grosso, a caminho da fronteira (sobre isso, pode-se ver o clássico "A Retirada da Laguna", de Taunay). Mas já vou entrando em outro assunto...
Um abraço, tenha um ótimo restante de semana!
"Moutinho não soube explicar para que serviam os tiros de canhão. Também desconheço seu propósito terapêutico. Alguém saberia dizer?"
ResponderExcluirOs desígnios dos militares são insondáveis, Marta. :)
Fique bem.
Deve estar querendo que eu tenha um ataque de riso!...
Excluir:)
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