segunda-feira, 27 de abril de 2015

Roupas para as índias

Se houve um fato que deixou estarrecidos os europeus que, em fins do Século XV e início do XVI chegaram à América do Sul, este sem dúvida foi o de que a população nativa não tinha, quase toda ela, o hábito de usar roupas. Na Carta de Caminha lemos, logo na descrição dos primeiros humanos avistados que eram "pardos, nus e sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas". Mais adiante, voltaria a afirmar: "Andam nus, sem cobertura alguma".
Pois bem, mais chocante era, ainda, para os valentes navegadores, que também as índias não usavam vestir-se, e Caminha não deixou de observar que não tinham elas nenhum constrangimento "de as nós muito bem olharmos"
Senhor Caminha!...
Ao escrivão da esquadra de Cabral ocorreu lembrar ao rei D. Manuel que, "a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior"; mas faz uma ressalva: "quanto ao pudor". Não queria, naturalmente, ser acusado de heresia quanto às crenças correntes, relativas ao pecado original.
Durante a celebração da segunda missa na Terra de Santa Cruz vários indígenas, motivados pela curiosidade, vieram presenciar o que faziam os portugueses. Dentre eles, relatou Caminha, "uma [...] moça, que esteve sempre à missa, à qual deram um pano para que se cobrisse e puseram-no em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir." Vê-se que, para ela, aquilo não fazia o menor sentido. Falo da roupa que lhe queriam impor, claro. Quanto à missa, é difícil julgar se podia apreender seu significado como um ritual de caráter religioso, até por não entender palavra alguma do que era dito (¹).
Cinquenta anos mais tarde a obsessão por vestir as índias prevalecia, ao menos entre os religiosos. O padre Manuel da Nóbrega, jesuíta que veio ao Brasil com o primeiro governador-geral Tomé de Sousa, em carta escrita na Bahia no dia 9 de agosto de 1549, destinada ao padre-mestre Simão Rodrigues, pedia-lhe que empreendesse uma verdadeira campanha no Reino entre senhoras devotas, com o objetivo de conseguir a doação de peças de vestuário com que pudessem cobrir as índias que aos domingos vinham à missa:
"Também peça Vossa Reverendíssima algum peditório para roupa, para entretanto cobrirmos estes novos convertidos, ao menos uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religião Cristã, porque vêm todas a esta cidade à missa aos domingos e festas, que faz muita devoção, e vêm rezando as orações que lhes ensinamos, e não parece honesto estarem nuas entre os cristãos na igreja, e quando as ensinamos. E disto peço ao padre mestre João tome cuidado por ele ser parte na conversão destes gentios, e não fique senhora nem parenta a que não importune para coisa tão santa, e a isto se haviam de aplicar todas as restituições que lá se houvessem de fazer, e isto agora somente no começo, que eles farão algodões para se vestirem ao diante." (²)
Não se enganava o padre Nóbrega: por todo o Período Colonial, e mesmo mais tarde, a roupa da gente pobre da terra, fosse para o trabalho quotidiano, fosse para dias de festa ou para ouvir missa aos domingos, seria confeccionada com o algodão rústico que se podia tecer no Brasil.

(1) Da missa, em si, só pelo costume é que os rústicos marujos deviam, também, entender alguma coisa, já que era oficiada em latim. A pregação de frei Henrique de Coimbra, após a comunhão, foi, certamente, em português.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 298.


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2 comentários:

  1. Imagino o pensamento desses devotos cristãos, durante a homilia, enquanto olhavam de esguelha para as "vergonhas" das meninas índias.
    Fizemos um longo caminho desde o tempo da inocência...
    Beijinho, um lindo fim-de-semana (por aqui comemora-se o Dia da Mãe no domingo)
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Ora, deviam ter apenas pensamentos os mais devotos... E tanto é verdade que Caminha, na Carta do Descobrimento, não diz palavra sobre o teor da homilia! Provavelmente não se lembrava rsrsrsrsrssssssssssssssss.
      O Dia das Mães, no Brasil, é comemorado no segundo domingo de maio. Entretanto, haverá um fim de semana prolongado, já que sexta-feira, 1º de maio, é feriado nacional, por ser Dia do Trabalho.

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