"Não é possível que haja escravos sem todas as consequências escandalosas da escravidão: querer a úlcera sem o pus, o cancro sem a podridão é loucura, ou capricho infantil."
Joaquim Manuel de Macedo, As Vítimas-Algozes
O medo de uma revolta de escravos
Proprietários de escravos e autoridades viviam sob medo constante de uma revolta de cativos. Não era para menos: privados da liberdade, submetidos a uma rotina de trabalho extenuante e, em muitos casos, com alimentação insuficiente e vestuário miserável, os escravos viviam no limite da capacidade humana de tolerância. Não era raro que algum escravo morresse em consequência dos maus-tratos que recebia. Estranho, mesmo, seria se não acontecessem rebeliões.
"Haitianismo", porém, já era outra coisa: o terror inspirado, não por uma revolta isolada, mas pela possibilidade de um levante massivo de escravos, não contra um senhor em particular, mas contra o próprio sistema escravista, nos moldes do que ocorrera durante os eventos relacionados à independência do Haiti.
E se alguma coisa parecida acontecesse no Brasil? E se os fatos ocorridos no Haiti chegassem ao conhecimento dos escravos e "contaminassem" a população cativa?
É fato, todavia, que, se uma rebelião de proporções nacionais jamais aconteceu no Brasil, aqui e ali pipocavam revoltas. Vejamos, então, leitores, uns poucos dentre os muitíssimos incidentes dessa natureza, dos quais se tem registro.
Algumas revoltas de escravos
Escravo, de acordo com Thomas Ender (²) |
2. O segundo volume da Crônica Geral do Brasil, escrita por Mello Moraes, traz este outro registro de uma tentativa frustrada de levante, novamente na Bahia:
"[...] Em virtude de uma denúncia da Câmara da Bahia no dia 20 de dezembro de 1830, de que na noite do dia 24 de dezembro [...], mesmo mês e ano, haveria horrorosa sublevação dos escravos na cidade e recôncavo da Bahia, por denúncias que teve o vereador da Câmara, Domingos José Antônio Rebelo, que um escravo de J. Galdino da Maia Guimarães lhe havia dito ter sido convidado para o levante na noite do Natal, dos africanos da nação mina, nagô, bronum, autá [sic], jeje, sendo o plano matar os senhores, capitaneados eles por um chefe, doze cabos de guerra, cujos africanos tendo planejado a sublevação foi ela abortada pelas prisões dos chefes e comprometidos em diferentes pontos da cidade [...]." (³)
A ideia de começar a revolta na noite de Natal pode ser facilmente entendida porque, estando a população livre ocupada nos festejos e celebrações religiosas, maior seria o descuido em relação à conduta dos escravos; além disso, muitos senhores tinham o costume de dar aos cativos alguma licença para comemorar a data, presenteando-os com uma pequena importância em dinheiro e, frequentemente, também com alguma roupa nova.
3. Em 1839, no Maranhão, "apareciam partidas de escravos armados debaixo da direção de um tal Cosme, negro muito audaz, que se havia evadido da prisão, e sublevado outros de diferentes fazendas" (⁴), conforme informação de Abreu e Lima.
4. Como quarto e último exemplo, uma pequena (e curiosa) rebelião ocorrida no Rio de Janeiro em 1858, tendo o pintor francês Auguste François Biard como testemunha ocular; hábil em usar pincel e tintas, Biard, neste caso, compôs muito bem o quadro empregando as palavras:
"Durante minha permanência no Rio venderam-se sete escravos que pertenciam a um senhor de bom coração; esses pobres diabos, habituados a ser tratados com doçura, não se conformavam com a ideia de irem cair a outras mãos e, nesse propósito, revoltaram-se, entrincheiraram-se. Ofereceram desesperada resistência a uns sessenta soldados e muitos deles só foram dominados depois de gravemente feridos. Levaram-nos então para a Correção. É nessa prisão que os donos de escravos mandam castigar suas "peças" por meio de chicotadas. [...]." (⁵)
O que se entendia por crime de insurreição de escravos no Código Criminal do Império do Brasil
De acordo com o Código Criminal do Império, Capítulo IV, Artigo 113, não era qualquer ato de insubordinação de um ou mais escravos que caracterizava o crime de insurreição; era preciso um mínimo de vinte rebeldes com a intenção explícita de atentar contra a ordem estabelecida, rompendo com a condição servil: "Julgar-se-á cometido este crime reunindo vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força." A punição para quem liderasse uma insurreição de escravos ia de quinze anos de galés à pena de morte; todos os demais integrantes da sublevação seriam sujeitos a açoites. Quantos? O juiz é quem determinava.
(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 1078.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, pp. 301 e 302.
(4) LIMA, José Inácio de Abreu e. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, p. 295.
(5) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 48.
Veja também:
Interessante o que nos conta, Marta, mas, mesmo tendo em conta o contexto da época, a escravidão era uma coisa execrável.
ResponderExcluirUm bom final de semana :)
Não existe escravidão boa; ainda que um ou outro "proprietário" de escravos tratasse bem os cativos, o sistema estava errado desde a raiz.
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