Aprendemos, quando crianças, que fadas ou bruxas podem usar determinadas palavras mágicas que, apenas pronunciadas, têm o poder de "fazer acontecer" qualquer coisa que se queira. Quando crescemos, temos a difícil tarefa de desaprender tudo isso. A duras penas, percebemos que é preciso muito mais que palavras mágicas para que aquilo que desejamos venha a ser realidade. Entretanto, é curioso observar que, em se tratando de política, parece haver muita gente crescida que ainda acredita em palavras mágicas - é só ver as listas de "eu prometo que...", "eu farei...", ou ainda "no meu governo..." que proliferam nas campanhas eleitorais. Resta saber se os crentes em contos de fadas são eleitores ou candidatos, ou se há entre eles um verdadeiro e misterioso pacto do faz-de-conta.
No belíssimo poema "O Navio Negreiro", de 1869, o jovem Castro Alves (que não jogava no time do faz-de-conta) escreveu:
"Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E a deixa transformar-se nessa festa,
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!..."
Reconheço que, para o leitor contemporâneo, a linguagem pode, talvez, soar difícil. Mas, em essência, o que o poeta afirma é que a bandeira do Brasil, com toda a beleza natural que representa, encontra-se, no momento em que escreve, manchada pela infâmia da escravidão. E, num arroubo de coragem, chega a dizer que melhor teria sido ver a bandeira despedaçada na guerra (da Independência, provavelmente), que tê-la agora transformada em mortalha para os escravizados, já que o objetivo do poema é descrever a brutalidade do tráfico de africanos e o horror do quotidiano em um tumbeiro, ou seja, em um navio da "carreira da África".
Como se sabe, a escravidão foi formalmente abolida em maio de 1888. No ano seguinte, em 15 de novembro, proclamou-se a República. Eis que, no contexto dessa nova ordem política, adotou-se um Hino à Proclamação da República, com letra de José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque e música de Leopoldo Américo Miguez. Para efeitos práticos, a data de publicação do Hino no Diário Oficial foi a de 21 de janeiro de 1890, ou seja, pouco mais de dois meses após a proclamação da República e pouco menos de dois anos após a Abolição.
Na segunda estrofe do Hino, encontram-se estas palavras:
"Nós nem cremos que escravos outrora,
Tenha havido em tão nobre país
Hoje o rubro lampejo da aurora,
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais, ao futuro
Saberemos unidos levar,
Nosso augusto estandarte, que puro,
Brilha avante, da Pátria no altar."
Para mim, há aqui um evidente diálogo entre o poema de Castro Alves e as palavras do Hino à Proclamação da República. Se Castro Alves invectiva a escravidão e todo o seu sistema de práticas cruéis, o Hino afirma ser a escravidão uma memória remota, substituída pela igualdade republicana. Se o Poeta dos Escravos lamenta a bandeira maculada pela escravidão, a letra de Medeiros e Albuquerque atesta a purificação do pavilhão nacional, obviamente em virtude também do advento do regime republicano.
Diga-me, leitor, seria possível em tão pouco tempo produzir-se uma tão radical mudança? Seria a proclamação da República o fiat lux da Pátria?
Entendo que, em seu entusiástico idealismo republicano, o autor quisesse, à força das palavras, mudar o País, banir até os mais tênues vestígios da escravidão, ver a nação constituir-se em uma autêntica fraternidade de cidadãos, habilitando-a a produzir um futuro brilhante. Belo intento, não há dúvida, que a maturidade política (semelhantemente ao que ocorre em termos de maturidade psicológica), tem demonstrado ser impossível só com palavras. Neste caso, a famosa expressão "sangue, suor e lágrimas" pode ser exata expressão da realidade. Prova disso é que o sonho continua algo distante mas, felizmente, não ao ponto de tornar-se impossível alcançá-lo.
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