quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O que é povo

Povo: dificilmente haverá palavra mais usada em época de campanha eleitoral. "O povo quer", "o povo precisa", "em nome do povo", "em favor do povo", "pela vontade do povo", e por aí segue o discurso repetitivo adotado por muitos candidatos. Quase não há quem desconheça o quanto o conceito de povo foi manipulado por regimes totalitários do Século XX.
Mas, afinal, o que é povo?
Resolvi fazer uma consulta popular (!!!), solicitando a várias pessoas que dissessem qual a primeira ideia que lhes vem à cabeça quando ouvem a palavra "povo". Selecionei algumas respostas, entre sérias e pitorescas:
  • "Quase todo o conjunto da população (com exceção da classe política)."
  • "É o que eu vejo na rodoviária todo dia, pela manhã."
  • "Povo são os habitantes de uma comunidade."
  • "Multidão de pessoas que falam a mesma língua e têm costumes e interesses semelhantes."
  • "Povo são os amigos, a galera."
  • "Habitantes de uma determinada região."
E vocês, leitores, o que dizem?
Em Roma, o conceito de povo estava, ao que parece, profundamente ligado ao exercício de tudo o que envolvia a cidadania romana, e, portanto, não será exagero dizer que, nesse sentido, povo podia, perfeitamente, ser entendido como o coletivo dos cidadãos. Como prova disso, vejam, leitores, estas palavras de Cícero, político e filósofo notável pela oratória no Século I a.C.: "Povo, porém, não é o ajuntamento de homens reunidos de qualquer modo, mas a multidão ligada pelo consenso da justiça e da utilidade comum [...]." (¹)
Muitos séculos mais tarde, "povo" passou a ter outro sentido. Coletivamente, veio a designar todos aqueles que não pertenciam à nobreza. Foi assim em parte dos tempos medievais e, com toda certeza, nos dias conhecidos como a "Era Moderna". Compreende-se, pois, sem grande dificuldade, que tal polarização tenha contribuído para acirrar conflitos e conduzir a revoltas e revoluções nada favoráveis à cabeça de reis e nobres. Afinal, o que é que havia de especial na gente da nobreza que, hereditariamente, lhe assegurava privilégios obtidos à custa do restante da população? Alexandre Herculano expressou opinião deveras interessante sobre a diferença moral entre o povo e as elites: "Sobre os farrapos do povo", disse ele, "não têm cabida os adornos de ouropel. É a única diferença moral que há entre ele e as classes superiores, que se creem melhores, porque no ginásio da civilização aprendem desde a infância as destrezas e os momos de compostura hipócrita" (²).
Que dizer do Brasil? C. Schlichthorst, militar alemão contratado como oficial para o 2º Batalhão de Granadeiros do Império, observou, em relação às mudanças introduzidas pela aplicação do ideário iluminista que, no caso do Brasil, teve, de permeio, o processo de Independência: "Como no Brasil nem todos os habitantes constituem o povo, pois os escravos são considerados mais coisas do que pessoas, depressa se decidiu a luta entre o velho e o novo sistema. Talvez por isso mesmo seja mais demorada sua completa consolidação." (³) 
O assunto é vasto, leitores, e dá margem a muita polêmica. Digo apenas que, a meu julgar, e tendo em conta o modo como se fizeram a Independência, a abolição do sistema de trabalho escravo e a proclamação da República, paralelamente à estrutura social vigente e a algumas ideias e valores muito antigos que, a despeito de caducos, insistiram (e insistem) em sobreviver, a consolidação de que falou Schlichthorst ainda é obra a ser concluída.

(1) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(2) HERCULANO, Alexandre. Lendas e Narrativas vol. 1. Lisboa: Bertrand e Filhos, 1851, p. 55.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 195.


6 comentários:

  1. Bem, Marta, à primeira vista, e num contexto universal, creio que povo seremos todos nós. Contudo, há que não esquecer que alguns construíram uma linha de delimitação para proveito próprio, baseada no poder, auto-elevando-se a um patamar
    superior. Confesso, no entanto que o tema tem pano de sobra para mangas.

    Abraço

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  2. Muito interessante a reflexão. Não só interessante, muito importante para os historiadores realizarem suas leituras do presente e do passado. Muitos historiadores ainda precisam se preocupar em pensar o significado atribuído ao tal "Povo" por regimes de governo do tempo presente. O caso Cubano é um exeplo. A separação dos três poderes é abolido como "criação burguesa" em virtude de um poder centralizado no partido único que seria o real representante do "poder do povo". Esse modelo de governo rígido, para não usar o conceito "ditadura", é mesmo a vontade do Povo?

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    1. Olá, Wendell, difícil, mesmo, é encontrar algum governo, sob qualquer forma que seja, que não tenha a pretensão de ser a vontade expressa do povo. A pergunta, neste caso, é: de que povo?
      É óbvio que há governos verdadeiramente democráticos, no sentido de que são eleitos por voto popular e mantidos no poder também com esse apoio. Não são muitos, porém. Mas, para apimentar o debate, lanço mais uma questão: o fato de um governo ter apoio popular significa que seja, necessariamente, bom?

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    2. Reflexão importante. Afinal já vimos tantos emergindo com gritos populares de apoio e desenvolvendo racismo e terrorismo de Estado.
      Parabéns pelas publicações. Adoro esse blog.

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    3. Obrigada, Wendell, você é muito gentil.

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