domingo, 30 de outubro de 2011

Sepultamentos em igrejas e cemitérios: costumes antigos e novos

"Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!"
                                                      Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

Seguindo o costume então vigente em muitas regiões da Europa, os colonizadores estabelecidos no Brasil a partir do século XVI tinham a preferência, sempre que possível, por serem sepultados no interior de igrejas e capelas, sendo frequentes, nesse sentido, as disposições testamentárias. Isso se devia a uma certa esperança, fruto da religiosidade popular, de que, sendo o corpo sepultado dentro dos limites do sagrado, próximo aos ossos de homens tidos como santos (padres, frades, etc.), aumentassem as possibilidades de uma ida precoce às moradas da bem-aventurança (nada novo, o fenômeno já ocorria nas famosíssimas catacumbas de Roma). Acrescente-se ainda que os testamentos do período colonial eram geralmente enfáticos em determinar a contínua celebração de missas em sufrágio da alma do testador, para o que, no caso de gente abastada, se fazia generosa provisão de recursos, ou se invocava a solidariedade e os temores de parentes e amigos, quando não se tinha muito a legar. Demais disso, era amplamente desejado o sepultamento próximo aos ancestrais, e as igrejas das pequenas povoações constituíam-se em espaço privilegiado para esse objetivo.
Sucede que, à medida que as povoações tornaram-se maiores (em termos populacionais), ficou quase impossível sepultar em igrejas todos os moradores que faleciam, mesmo quando se tratava de membros de confrarias religiosas, daí surgirem pequenos cemitérios anexos aos templos, ao mesmo tempo em que se reservava a inumação no interior das igrejas apenas para figuras mais importantes. Desse mesmo fenômeno decorreu um outro, macabramente curioso: as igrejas, já pequenas para os mortos, tornaram-se insuficientes também para os vivos. A partir disso, em vez de conservar as pequenas igrejas e construir outras, ocorreu em muitos lugares que a primitiva edificação fosse posta abaixo para dar lugar à nova, aparecendo, como seria óbvio, a questão quanto ao que fazer com as ossadas que estavam sepultadas no edifício fadado à demolição. Geralmente coletavam-se os ossos para que recebessem sepultura em outro local, mas com frequência sucedia ser impossível assegurar que tudo se recolhesse com perfeição, daí surgindo muita lenda para aterrorizar os supersticiosos.
Posteriormente, preocupações higienistas, aliás bastante justificadas, apontaram a inconveniência da manutenção de cemitérios em meio às áreas densamente povoadas, particularmente quanto estes ficavam nas imediações dos locais de suprimento de água para a população. Este fato, aliado à necessidade de fornecer mais vagas para novos "moradores", contribuiu para diminuir o uso, em áreas urbanas mais desenvolvidas, dos cemitérios anexos às igrejas, havendo, quanto a isso, um outro fator decisivo, o da separação entre Igreja e Estado desde a proclamação da República, que levou à instituição de cemitérios preferencialmente longe das áreas centrais, administrados pelo poder civil e não mais por instituições eclesiásticas, como sucedia anteriormente.

Muitos cemitérios brasileiros têm, à entrada, palavras referentes à crença na ressurreição
 dos mortos.
Este, entretanto, é diferente...
(Entrada do Cemitério de Paraibuna - SP)

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