domingo, 15 de maio de 2011

Pena, tinteiro, papel e teclado

Houve um tempo em que as (poucas) pessoas que escreviam usavam penas preparadas para isso - penas mesmo, de ave, geralmente penas de ganso, que eram consideradas as melhores. Além de serem de ganso, mandava a tradição que fossem, se possível, da asa direita, já que se acreditava que essas eram as de melhor qualidade. Acontece que, como instrumentos de escrita, as penas desgastavam-se rapidamente e precisavam ser refeitas ou substituídas. A invenção das penas de metal (um longo processo, principalmente ao longo do século XVIII) resolveu em parte o problema do desgaste, conservando-se nos novos instrumentos de escrita a forma básica das antigas penas, assim como, por metonímia, o nome.
Restava ainda a solucionar a questão de que, ao escrever, a pena necessitava, a cada instante, ser molhada em um tinteiro, o que contribuía para tornar a escrita irregular e extremamente morosa (embora eu às vezes me pergunte se isso não resultaria em uma vantagem, ao possibilitar maior tempo para reflexão sobre o que se escrevia). De qualquer modo, papel, naqueles tempos, era um artigo dispendioso que devia ser usado com sabedoria, para propósitos bem definidos e não para registrar garatujas imprestáveis. Quase todos haveremos de concordar que ainda precisamos dessa parcimônia, já não em virtude do preço, mas porque as árvores precisam viver.
A dificuldade com o reabastecimento de tinta começou a ser solucionada em fins do século XIX com a invenção (*) e gradual aperfeiçoamento das canetas-tinteiro, que tinham algum tipo de reservatório de tinta para garantir maior autonomia a quem escrevia. O problema nesse caso era o preço elevado que fazia delas, ao menos inicialmente, objetos de uso profissional e não uma ferramenta com a qual qualquer pessoa podia escrever. Os jovens escolares, por exemplo, continuaram, décadas afora, a escrever com a velha pena de metal, provocando, nas salas de aula, as frequentes, desastrosas e desastradas consequências que invariavelmente resultavam dos tinteiros entornados sobre as carteiras.
Há ainda a acrescentar que o crescimento nos índices de alfabetização em grande parte do mundo ao longo da primeira metade do século XX provocou uma nova demanda por instrumentos de escrita que fossem, simultaneamente, baratos e confiáveis, demanda essa que só viria a ser plenamente satisfeita com a popularização das canetas esferográficas, um invento dos anos quarenta que se popularizou ao longo dos cinquenta. Fato curioso a respeito das esferográficas e que vale a pena recordar é que o início de sua comercialização resultou em um fenômeno muito parecido (guardadas, evidentemente, as proporções do mercado consumidor da época), ao ocorrido recentemente em relação aos tablets, com filas de compradores ansiosos e todas as unidades postas à venda rapidamente esgotadas.
Quem ainda escreve à mão, com lápis ou caneta? Excetuando-se a criançada em idade escolar, é perfeitamente possível a alguém passar dias e até semanas sem colocar uma só letra no papel, servindo-se, em lugar disso, de meios virtuais de escrita. Ora, esse fato tem levado muitos educadores a questionar a necessidade de impor às crianças o aprendizado da escrita manual - com lápis e caneta - e consequentemente, da muitas vezes detestada caligrafia. Afinal, se apenas escrevemos com o uso de teclados (reais ou virtuais), porque deveríamos gastar o tempo precioso dos jovens educandos no aprendizado de um método de escrita claramente ultrapassado?
Essas não são questões para as quais temos respostas prontas e, por isso, toda a prudência precisa ser empregada. É verdade que, quando as esferográficas já eram populares e de baixo custo, resultando em escrita fácil, rápida e limpa, ainda havia estabelecimentos de ensino que exigiam de seus alunos o uso de penas (metálicas, por suposto) ou de canetas-tinteiro, para desgraça geral e dos canhotos em particular, a quem a escrita molhada, da esquerda para a direita, era um óbvio transtorno, daí a ideia estúpida, mas amplamente divulgada, de que "canhotos tinham letra feia", que ia a extremos em instituições que obrigavam os pequenos canhotos a escreverem como se fossem destros, ou seja, usando a mão direita. Não é, portanto, nenhuma surpresa que tantos professores torturassem alunos com métodos antiquados e nem que tantos alunos odiassem escolas e professores incapazes de compreender as vantagens de um avanço tecnológico tão evidente.
Como será em nossos dias? Só o tempo nos dará resposta, mas quando há dúvida, pode-se ao menos optar pela adoção de um modelo educacional que não seja omisso quanto às possibilidades das novas tecnologias, de modo que a transição seja feita da forma mais suave e intelectualmente estimulante possível.

Anúncio de caneta com depósito de tinta,
Revista Echo Phonographico, janeiro de 1904

(*) Há controvérsias a respeito, mas geralmente tem-se o ano de 1884 como sendo o do registro da primeira patente de uma caneta que poderia, sem sombra de dúvida, ser considerada uma caneta-tinteiro.

6 comentários:

  1. Que bacana essa publicação. Sou estudante do curso de letras na Universidade do Estado da Bahia e o meu interesse remete a disciplina Critica Textual Edições e Estudos - que me despertou para o universo maravilhoso de textos escritos a séculos e evidentemente implica em conhecimento dos materiais utilizados à época da escrita dos mesmos.

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    1. Que bom que você gostou, Unknown! Obrigada por sua visita ao blog. Apareça sempre por aqui. :-)))

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  2. Achei muito interessante esta matéria. Entretanto, como engenheiro e professor universitário, muitas vezes temos, em trabalho de campo, que fazer anotações e desenhos a mão livre porque não dispomos de computadores para isto ou porque um desenho ou "croquis" feito a mão demanda muito menos tempo que um desenho feito num computador. De mais a mais, embora eu não seja um especialista no assunto, pergunto a mim mesmo se a escrita a mão não seria uma forma de exercitar o controle motor e portanto uma atividade benéfica para o cérebro.

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    1. Olá, Unknown, se quer saber minha opinião, acho que a escrita à mão dificilmente desaparecerá por completo. Contudo, a evolução da tecnologia tem disponibilizado recursos surpreendentes, substituindo, com vantagem, processos morosos do passado, e quem é que pode afirmar com certeza até onde isso irá? Como historiadora, faço pouquíssimo trabalho manuscrito, e sempre usando lápis ou lapiseira (um procedimento para evitar que, por acidente, algum precioso documento histórico seja danificado por tinta de caneta).

      Gosto da ideia da caligrafia como exercício para a motricidade fina, e não só para jovens escolares. Há muita gente que a pratica como hobby, e eu mesma já fiz isso. Hoje não tenho mais tempo para tanto, mas posso assegurar que é uma atividade bem interessante. Faço apenas a ressalva de que, em nosso tempo, já não faz muito sentido exigir que crianças façam longas horas de exercícios caligráficos. Basta que aprendam a escrever de forma clara e legível, concorda?

      Agora, uma observação que me ocorre: já notou como a forma de produzir um texto é radicalmente diferente quando feita no papel e quando em digitação, por exemplo, em um desktop? Afinal, tudo isso pode estar moldando e mudando nossa cultura. É algo em que pensar...

      Obrigada por sua visita ao blog. Apareça sempre!

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