terça-feira, 19 de outubro de 2010

Do desprezo pelo trabalho ao orgulho profissional: uma proposta de revolução no ensino técnico

É amplamente sabido que, no Brasil, a escravidão deixou, entre inúmeras outras desgraças, uma péssima tradição de se desvalorizar o trabalho. Não poucos historiadores têm demonstrado que, na ânsia por eximir-se de qualquer trabalho manual, mesmo os mais pobres dentre os homens livres faziam todo o esforço possível para ter ao menos um escravo. Esse fato exerceu forte impressão sobre viajantes estrangeiros que aqui estiveram no século XIX. Saint-Hilaire, por exemplo, escreveu que "existem menos escravos, nos lugares em que menos se envergonham os homens livres de trabalhar". (*)
Se percorrermos a literatura do século XIX, particularmente a obra de Machado de Assis, logo notaremos a perspicácia do autor em retratar a sociedade da época, na qual a busca por um emprego público (com salário garantido e poucas horas de expediente) era quase uma obsessão. Nesse tempo as vagas eram preenchidas por nomeação, não por concurso. Nesse sentido, portanto, progredimos.
Certo, não temos mais escravos, mas as contradições se intensificaram. Cresceu  muito ultimamente a até compreensível opção pelos concursos que abrem as portas para carreiras supostamente estáveis, para os quais se inscrevem sempre milhares de candidatos, disputando umas poucas vagas. Dentre os chamados "concurseiros", há muitos que são vítimas do desemprego estrutural, já que suas antigas habilidades profissionais não são correspondentes às atuais exigências. Enquanto isso, porém, há no mercado de trabalho vagas para trabalhadores qualificados que nunca são preenchidas. Por quê? Simplesmente porque não há trabalhadores qualificados em quantidade suficiente, atualizados, que dominem cabalmente as modernas tecnologias. E, como cúmulo das aberrações, há nesta época do ano (em que são realizados os "vestibulinhos") milhares e milhares de jovens que disputam o ingresso nas poucas escolas profissionais existentes, mesmo quando algumas dessas instituições oferecem cursos bem pouco atraentes. Vê-se que, no momento em que temos a chance de superar de vez a fobia ao trabalho, não há escolas suficientes para formar trabalhadores! Não preciso gastar tempo e digitação discutindo o dano que tal situação causa e ainda muito causará à economia do País.
É bom saber, leitor, que o Brasil não é o único lugar do mundo em que há falta de profissionais, particularmente no campo da engenharia. A imprensa alemã, por exemplo, tem falado em "tecnofobia"  por parte dos estudantes. O caso do Brasil é um pouco diferente - faltam profissionais de nível médio, sobram diplomados em cursos superiores. O problema é que os engenheiros recém-formados são muitas vezes egressos de estabelecimentos de ensino de péssimo nível, sendo incapazes de exercer as funções atestadas por seus diplomas.
Que fazer? Se você tiver um pouco de paciência, vou expor minhas ideias:
a) Precisamos oferecer qualificação profissional a todos os jovens que a desejarem. Precisamos de escolas técnicas, mas não apenas algumas, precisamos de muitas escolas técnicas. A questão é que não basta assegurar vagas, é preciso disponibilizar escolas perfeitamente conectadas às necessidades do mercado de trabalho, capazes de orientar seus alunos em suas vocações e habilidades, oferecendo variedade de cursos. Sendo a maioria dos aprendizes ainda adolescentes, a formação profissional precisa, necessariamente, vir acompanhada de sólida base nas disciplinas do ensino médio, além de orientação adequada para a construção de valores, o que pressupõe a adoção do estudo em período integral. Os exames de seleção, só os considero aceitáveis em caráter classificatório, para definir a escola o o curso em que se ingressará, jamais para repartir umas poucas vagas entre uma multidão de meninos e meninas que lutam para preparar-se para o exercício digno de uma profissão.
Pode-se argumentar que tudo isso teria um custo muito elevado. Concordo, mas o retorno seria excelente. Não tenho dúvidas de que, havendo vagas asseguradas, não será admissível a existência de adolescentes desocupados pelas ruas, os gastos com a repressão a menores infratores serão bastante reduzidos, melhores profissionais serão formados e a elevação da renda será estabelecida em bases sólidas. Principalmente, serão preparados cidadãos conscientes e orgulhosos de sua capacidade e totalmente independentes de subvenções do Estado para o sustento próprio e de suas famílias.
b) Para cumprir com a verdade, é até surpreendente que haja quem queira estudar qualquer das engenharias, diante da horrorosa situação do ensino das ciências exatas (situação não menos horrorosa em outras áreas, é bom dizer, e os exames nacionais que avaliam estudantes atestam perfeitamente o que digo). Precisamos, creio, para sanar o problema, de duas posturas, sendo uma delas no curto e outra no longo prazo.  A de longo prazo é banir das escolas o pavor à matemática, mediante a adoção de métodos corretos de ensino, maior carga horária e contratação de docentes qualificados e remunerados na proporção da importância social da tarefa que exercem; já a de curto prazo passa por apertar o cerco às instituições de ensino superior, permitindo o funcionamento apenas das que realmente têm condições de formar bons engenheiros. Assinalo que tudo o que disse em relação ao ensino de engenharia vale, mutatis mutandis,  para as demais áreas do conhecimento.
E você, o que pensa a respeito? Estou convencida de que tudo isso constitui um empreendimento que ultrapassa as fronteiras de um único governo, precisa ser parte de um projeto nacional, de continuidade assegurada e não sujeita a pruridos eleitoreiros e ideológicos. O que proponho é uma verdadeira revolução no modo de ver e administrar a educação profissional.
Tem o Brasil maturidade política para isso? Podemos ao menos experimentar...

(*) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 62.


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