Era o ano de 1788, e o astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida, a serviço de Sua Majestade, o Rei de Portugal, andava a correr terras e águas do Brasil, com o propósito de demarcar fronteiras, traçar mapas e reconhecer territórios.
A vida dos que compunham a sua expedição não tinha facilidades. Horas e horas dentro de canoas, noites sob chuva (de água, às vezes; de mosquitos, quase sempre). Sol escaldante durante as horas dos dias claros, trovoadas, cachoeiras perigosas, até mesmo falta de comida e de água potável. Doenças desconhecidas e letais, picadas de cobras e aranhas. Tinha-se o caldo de cultura perfeito para os mais terríveis pesadelos da vida real.
Chegou dezembro e, com ele, o Natal. A expedição percorria o rio Tietê, fazendo viagem inversa à dos monçoeiros que seguiam para Cuiabá. Em seu diário, no dia 26 de dezembro, Lacerda escreveu:
"Neste dia naveguei 4 1/2 léguas por me demorar 5 1/2 horas em matar e esperar que surgisse do fundo do rio uma anta, que no fim de 4 horas apareceu com grande alegria de todos, em que eu também tive parte, por ter com que fazer o meu banquete do post diem do Nascimento do Nosso Redentor [...]."
"Neste dia naveguei 4 1/2 léguas por me demorar 5 1/2 horas em matar e esperar que surgisse do fundo do rio uma anta, que no fim de 4 horas apareceu com grande alegria de todos, em que eu também tive parte, por ter com que fazer o meu banquete do post diem do Nascimento do Nosso Redentor [...]."
Passou, em seguida, a explicar em que consistiu o banquete do dia de Natal propriamente dito:
"[...] O de ontem consistiu no panem nostrum quotidianum, que é feijão capaz ainda de ter filhos e netos, e em bugio cozido, e em bugio com arroz, e em bugio moqueado (*), cujo papo comi por ser a parte mais saborosa."
Pobres bugios... A despeito dos obstáculos que vinha enfrentando, Lacerda preservava algum senso de humor.
Como que mudando de assunto, mas retornando ao princípio, ainda observou:
"Todos os rios desde o Coxim inclusive, entrando também o Tietê, têm muita abundância de antas, chamadas ruças, que são da grandeza de uma mediana vaca, e no gosto muito melhores."
"Todos os rios desde o Coxim inclusive, entrando também o Tietê, têm muita abundância de antas, chamadas ruças, que são da grandeza de uma mediana vaca, e no gosto muito melhores."
Creio que ninguém terá dificuldade em compreender as preferências gastronômicas do astrônomo Lacerda, à luz, afinal de contas, da escassez que reinava nas expedições do Século XVIII que iam ao interior do Brasil. Essas viagens eram tão perigosas que aqueles que delas saíam vivos bem podiam olhar para si mesmos como personagens de muita sorte.
(*) Tipo de churrasco à moda indígena.
Veja também:
Personagens de muita sorte, mesmo. Imagino que, quando relatassem as suas peripécias, os conterrâneos o tomassem por herói. Ao menos não passou fome na noite de Consoada.
ResponderExcluirAbraço, Marta. Feliz Ano Novo.
Ruthia d'O Berço do Mundo
Não passavam fome, mas, quando voltavam à vida urbana, dificilmente teriam saudade do cardápio da selva.
ExcluirAté 2016...