quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Natal muito triste para um jumentinho

Conta o padre Simão de Vasconcelos em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, que, nos primeiros e difíceis tempos do Colégio dos jesuítas na Bahia, viveu nele um irmão de nome Domingos, mais conhecido entre os religiosos pelo apelido de Pecorela (¹). Segundo escreveu Simão de Vasconcelos, era esse Domingos Pecorela um homem de pouca instrução, mas muito devoto e extremamente dedicado aos afazeres relacionados à manutenção diária do Colégio:
"Cinco anos serviu este servo fiel à Companhia, e em todos eles se teve sempre por um escravo comprado por dinheiro para o serviço da casa, sem mais querer, nem mais pretender, que o de um servo leal. Entre os mais ofícios da obediência, o principal era ter cuidado em um jumentinho, e ir com ele a todas as partes onde era mandado em busca do sustento da casa, que era pobríssima." (²)
É fato que Simão de Vasconcelos fez sua Crônica mais de um século depois da morte do irmão Domingos, mas usava consultar registros escritos e relatos daqueles que tinham algo a contar. Além disso, não constitui grande dificuldade imaginar quanto era complicado fazer provisões para o sustento dos que viviam no Colégio quando a colonização na Bahia estava apenas começando. Assim, o relato segue explicando que, na falta de comida, Domingos Pecorela era mandado às aldeias de índios amigos, para pedir alguma doação:
"Quando faltava de comer na Casa (que era muitas vezes), não desmaiava Domingos Pecorela: ornava seu jumento, ia-se às aldeias dos índios e entrava com eles com tal graça, falando-lhes pela própria língua, em que era perito, que estes lhe faziam a carga do mais estimado de seus haveres, farinha, caça do mato, batatas, bananas, carás, que é o que possui esta gente quando mais rica, e era naquele tempo o comer de mais estima dos padres." (³)
Pecorela, sempre em companhia do fiel companheiro de quatro patas, ia também buscar lenha e água para o Colégio:
"Bastava significar-lhe o Superior: "Irmão Domingos, ide à lenha para a cozinha", e sem mais demora, a pé descalço [...], aparelhava seu jumentinho e ia ao mato a carregar de lenha, e da mesma maneira à fonte e carregar de água." (⁴)
Ora, o que haveria de incomum nesta história? No Século XVI era perfeitamente normal que animais de carga fossem empregados para o transporte de água (não havia encanamento) e de lenha (principalmente para manter aceso o fogão); por outro lado, não é surpreendente que os padres pedissem ajuda aos indígenas quando lhes faltava o necessário à subsistência. De qualquer modo, dirão os leitores, alguém no Colégio teria que cuidar do jumento...
É que Domingos Pecorela era mesmo muito afeiçoado ao animal que estava sob sua responsabilidade:
"Era tal a humildade simples e simplicidade humilde deste bom irmão, que chegava a ter-se por obrigado a servir ao próprio jumento; assim curava ele, assim se compadecia de seu trabalho, como se fora criatura racional; chegava a descuidar de si por cuidar do asninho." (⁵)
Exagero? O padre Simão de Vasconcelos estava disposto a provar que não:
"Pareceu-lhe [a Domingos Pecorela] algumas vezes que vinha carregado sobre suas forças; e logo compadecido tirou parte da carga das costas do jumento, e pôs às suas, e caminharam ambos carregados; e aos que lhe perguntavam por que tomava aquele trabalho, respondia cheio de compaixão: Porque esta pobre criatura não pôde mais, e que se diria de mim, se viesse ela arrebentando com a carga, e o irmão Domingos folgando?" (⁶)
Pecorela faleceu no Colégio da Bahia em 24 de dezembro de 1554, ou seja, na véspera do Natal. Quanto ao jumento, não se têm dele mais notícias, nem sabemos se, acaso, foi colocado, na mesma noite, em algum presépio vivo. Mas deve ter sentido muito a perda de seu melhor amigo.

(1) Provavelmente faziam um trocadilho com o termo italiano Pecorella, ou seja, ovelha.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 105.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid., pp. 105 e 106.
(6) Ibid., p. 106.


Veja também:

4 comentários:

  1. Um belo apontamento, Marta. Grato.

    Um Feliz Natal :)

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  2. Com certeza a vida do jumento mudou desde então.
    Marta, não sei se festeja o Natal, mas em todo o caso é uma época de pausa e reflexão, pelo que quero desejar um Feliz Natal e agradecer as visitas ao meu Berço, ao longo do ano. Obrigada pelo apoio, comentários, amizade. Que 2016 traga muitas alegrias e saúde.
    Beijinho de Boas Festas!
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Bem, o padre Simão de Vasconcelos não disse mais nada sobre o jumento, mas prefiro imaginar que ele arranjou um novo amigo.
      Tenha um bom Natal, e muitos posts novos em O Berço do Mundo no próximo ano rsrsrsrssssss...

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