As anhumas (Anhima cornuta) impressionaram os colonizadores. Tudo culpa do espinho córneo que têm na cabeça, que, para os supersticiosos de antigamente, lembrava um chifre e, por isso mesmo, sugeria vínculos sinistros. Bobagem, é claro, mas isso é o que pensamos nós, que vivemos no Século XXI.
Diz-se que, no passado, o rio Tietê era chamado Iguatemi, cujo significado seria "o rio das aves anhumas". Ora, leitores, isso foi há séculos. Embora eu não diga que seja impossível achar anhumas nas proximidades do Tietê, devo atestar que jamais vi qualquer delas por lá. Alguém dos leitores já viu?
O Padre Anchieta fez referência às anhumas, em carta escrita em São Vicente no ano de 1560. Descrevendo uma delas, observou: "[...] Quando grita parece o zurrar de um asno. [...] Quando acossada pelos cães, não foge, ainda que a grandeza do corpo não a embarace de voar; antes os afugenta, ferindo-os gravemente [...]." (¹) Quanta coragem!
Já no Século XIX, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, registrou em seu diário de viagem, no dia 1º de agosto de 1826:
"De manhã matou-se junto a uma lagoa uma anhuma (²), pássaro raro e notável [...] pela excrescência córnea fina, e de três e meia polegadas de comprido, que lhe nasce na cabeça. Tem também no encontro das asas dois esporões que, como armas defensivas, podem causar ferimentos graves. A plumagem é branca e preta, sarapintada na cabeça. preta e parda ao redor dos olhos, escura no resto do corpo, com exceção da barriga, que é branca. O íris é alaranjado. [...]." (³)
Com essas características, não causa surpresa que as anhumas, entre o povo pouco instruído, fossem alvo de um sem-número de superstições. Foi o que constatou José Vieira Couto de Magalhães, ao percorrer, em 1863, parte da Província de Goiás. O caso é que, tendo abatido uma dessas aves, notou que a tripulação do barco com o qual percorria o rio Araguaia entrou em viva discussão. Motivo? Cada um queria um pedaço da anhuma, e não era para comer, já que os ossos eram o principal assunto da disputa:
"[...] Este requeria uma espécie de unicórnio que elas [as anhumas] trazem sobre a cabeça; aquele queria um esporão; um outro o osso da coxa esquerda, e, como eram muitos, cada um alegava seu direto, sem que nenhum tivesse razão." (⁴)
Disposto a averiguar a causa da porfia, Couto de Magalhães descobriu que a mais crassa superstição motivara o interesse por esquartejar a ave:
"[...] Segundo eles, eram preservativos contra maus ares, maus olhos, mordedura de animais venenosos, e outras que tais coisas.
Um dos companheiros de viagem contou-me então que em Goiás, e sobretudo no norte da Província (⁵) esta crença é geralmente espalhada. Extraem ossos do animal, fazem-lhes furos, e atam-nos ao pescoço das crianças, como um talismã que lhes preserva de quase todos os males." (⁶)
Hoje achamos graça nessas crendices, e tendemos a interpretá-las como uma espécie de folclore. Mas, há menos de duzentos anos, havia, como se vê, quem de fato acreditasse nelas. No interior do Brasil a instrução pública era quase inexistente, valendo o mesmo quanto aos cuidados médicos, de modo que a população, carente de esclarecimento e desconhecendo tanto práticas de higiene quanto as verdadeiras causas de doenças, buscava, em um conjunto de superstições, a proteção para o mundo que a amedrontava e não conseguia explicar.
(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 125.
(2) Era comum que animais fossem mortos e empalhados, porque só assim é que poderiam ser expostos em museus pelo mundo afora.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 43.
(4) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 169.
(5) Atualmente, Estado de Tocantins.
(6) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Op. cit., p. 169.
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Marta,
ResponderExcluirA propósito do que escreve, não se esqueça que na Europa, na Idade Média, o prestígio de muitas cidade se media pelas relíquias (ossos) de alguns santos. Embora em latitudes diferentes, não seria o mesmo tipo de crendice que movia as pessoas?
Uma boa semana :)
Para a Igreja não é, certamente, a mesma coisa. Mas, na prática, para a população que tinha pouca ou nenhuma instrução (em um e outro caso), talvez não houvesse, mesmo, grande diferença. É uma ideia interessante...
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