Há notícias de monçoeiros que acabaram enlouquecendo na viagem às minas - "surtaram", hoje se diria. É que a longa jornada por rios aparentemente intermináveis, rodeados por matas que também pareciam infindas, ao lado de perigos contínuos, reforçados pelo presenciar quase diário da morte de companheiros de viagem, levava os expedicionários a um verdadeiro teste de resistência não apenas física, mas sobretudo mental.
No século XIX, quando as monções cuiabanas já eram coisa do passado, a Expedição Langsdorff seguiu a mesma rota dos monçoeiros rumo ao Brasil central e, dali, para a região amazônica. Entre os expedicionários estava o jovem desenhista francês Hércules Florence, que prestou trabalho verdadeiramente impagável ao registrar em imagens o que se via no caminho. Por certo não enlouqueceu (não se pode dizer o mesmo do líder da Expedição), mas, no relato escrito que deixou, às vezes ocorreu exagerar. Tem-se uma amostra disso nesta descrição que faz do urubu-rei, urubu-branco ou urubutinga (seja lá qual for o nome que se lhe dê, a ave é a mesma):
Cabeça de urubu-rei ou urubutinga |
Acima da cabeça há uma parte completamente desnudada, rubra, com penazinhas tão pequenas e separadas que parecem pelos. Por baixo dos olhos e do pescoço saem carúnculas unidas e compridas, de um escuro claro e que, em forma de arco, vão-se ligar acima da nuca, unindo-se então num filete carnoso que desce por trás do pescoço até a base do peito. É vermelho claro em cima, preto no meio e amarelo em baixo. As cores da cabeça são realçadas por um fundo negro do ébano, que bem se pode chamar de moldura. O pescoço é totalmente desnudado de penugem. A pele parece pele de luvas: é amarelo vivo na frente, cor que cambia insensivelmente para vermelho carregado. Esse pescoço nu e tão bem colorido sai de um colar de penas acinzentadas que parecem vir das costas e se reúnem no peito, a formarem novamente uma linha de separação que se esbate pouco acima da barriga. O colar semelha um ornato de mulher. O resto das penas é branco, exceto nas extremidades das asas que são pretas. Os pés são brancos." (*)
Percebendo que talvez tivesse ido longe demais, acrescentou:
"Desculpem-me esta descrição, que não é de naturalista."
Um belo exemplar da ave descrita por H. Florence |
(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 36 e 37.
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